As Proezas do Soneto
Cyro de Mattos
A poesia permite ao homem
realizar-se como um ser mágico, que
consegue retirar a cegueira da matéria.
A poesia está em tudo. Procure bem, você a encontra. Não esqueça que só o poeta a ergue no poema
como testemunho de sua experiência perante a existência. Nessa corrente
energética que emana da natureza humana, o soneto acontece como uma festa
prazerosa de poucas estrofes. Trata-se
de uma forma fixa de poema com quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos.
O último verso é tido como “chave de ouro”,
devendo surpreender e encantar
com a sua revelação no desfecho.
Combatido pelos vanguardistas, os protagonistas da Semana da Arte Moderna
de 22 não lhe pouparam depreciações,
alardeando naquele movimento a indignação de “fora a gaiola” contra o indefeso poema
breve, além de outras referências nada
agradáveis. Sua febre imperceptível fez com que atravessasse séculos,
permanecesse até hoje, reverenciado com
fidelidade por poetas modernos, com
vistas a atingir o nível superior da alma. Esse
breve espaço operacional da criatividade assim vem sustentando o ser em estado súbito da comoção.
A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas com o verso
decassílabo. Considerado como o mais melodioso e harmonioso, é usado
no soneto. Apesar disso, é dado ao poeta
que cultiva o soneto a alcunha de
soneteiro, sonetoso e sonetifero. O exímio sonetista baiano João Carlos
Teixeira Gomes registra uma série de expressões em desfavor das andanças
do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da
inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da
criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de
palavras cruzadas”, “museu do bolor
formalista”, “chavão de segunda ordem”,
“formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas” .
Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem de imbatível
criatura nanica, sua garra permite que continue de pé, ínfimo caminhante
do sol e da chuva nos seus modestos passos de quatorze
versos, buscando em sua peripécia
métrica e feiticeira do imaginário atingir o ponto máximo do encanto na alma do
receptor. Segue indiferente às acusações e atropelos da
legião de fanáticos, que não o aceitam,
sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta
dos poemas maiores, de poetas célebres com suas criações em versos longos, eloqüente
quantidade de estrofes.
É dado a formar uma sequência
quando vários poemas são ligados
entre si por uma concepção e execução magistrais do tema, como se deu com os cento e cinqüenta e quatro
sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é
formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15
sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos são versos de um
outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.
O soneto em mãos seguras de mestres arrebata delírios, alimenta paixões,
cultiva ilusões, carrega fardos, cai em desterros, colhe perdas, ergue perjuros, dissemina encantos, enfeitiça
nos vazios. Incrível, abre-se à participação de um acontecimento raro, rico, exuberante. Transmuda-se em uma
festa de imagens opulentas, faz-se
comunhão do saber aliado à beleza, espalha na vida as suas sementes nas zonas encantatórias da
beleza com síntese.
É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no homem como
resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de transcendência
com base em apetites e desejos. Dotado dessa voz estranha, em cuja inspiração tira o homem de si mesmo
para ser tudo o que é, percebemos que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é
de algo que se confunde com cada um de nós. Visto como evocação, recriação de
uma experiência, eis que ressurge de uma
senda que está dentro do lado noturno de
nós mesmos. Convém lembrar que essa imagem do mundo transmitida em poema
com o formato breve, rígido, pode causar
ao poeta a indiferença aos seus sonhos
constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.
Sonoridade que serve como vínculo do verso para salientar a significação
da vida, unidade rítmica que sustenta a ideia fluindo no texto como música, ardência que soa na rima com vibrações da
palavra tradutora de inventiva rumorosa, da qual emana com luzeiros e fulgores,
procedidos como hábitos e atitudes, o
poeta eficaz aceita no soneto o desafio de exibir-se com indumentária
repetitiva de inclinações breves.
No resultado final da imagem, o
soneto, esse feitiço que perdura além do tempo, presta-se à natureza diversa dos humanos, ao fogo do
amor, que cresce como luz na treva.
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