Literatura Infantil e
Juvenil Baiana
Entrevista a Cyro de Mattos por
Normeide Rios,
Professora da Universidade Estadual de
Feira de Santana.
Normeide
Rios
- Como o senhor se tornou escritor? O que o motivou a escrever para crianças e
jovens?
Cyro
de Mattos - Publiquei
meu primeiro conto “A Corrida” no suplemento literário do Jornal da Bahia, editado por João
Ubaldo Ribeiro, em 1960. Daí para cá nunca mais parei. Meu livro de estréia foi Berro de fogo, contos, em 1966. Está riscado de minha bibliografia
porque seu texto envelheceu em pouco tempo. Pelo menos serviu para deflagrar
meu processo criativo. Escrever começou assim
na adolescência e se fez dentro de mim fundamental como o amanhecer.
Ainda que seja um grão no deserto, escrever é a minha maneira de inaugurar
sentidos, estar sozinho e solidário num só tempo, dizendo silêncios. Este é meu lugar onde arrisco tudo. Agradeço à ternura
que herdei de minha mãe a inclinação
para escrever livros infanto-juvenis. Quando já tinha escrito uma vintena de
livros para adultos, aconteceu no escritor idoso o menino acordar e pedir
que eu escrevesse para crianças e jovens. Tudo foi de repente, sem
programar nada. Não sei explicar. De uns vinte anos para cá, tenho escrito para
crianças e jovens. Vem dando certo, com prêmios importantes e reedições
sucessivas de livros.
Normeide
Rios
- Existem diferenças entre escrever para adultos e escrever para crianças e
jovens?
Cyro de Mattos - O livro para adultos
tem suas características próprias, sua técnica, espaço, tempo, lugar e modo. Tratamento e abordagem que o diferem
da obra escrita para crianças e jovens. O livro infantojuvenil possui universo criativo específico, com suas nuances,
linguagem, ritmo, psicologia. Mas livro bom é o
rico de sentidos, servindo para
idosos e pequenos. Convenhamos que Kafka, Pessoa, Jorge Luís Borges, Eça de
Queiroz e Machado de Assis, entre outros, que eu saiba não escreveram seus
livros importantes para crianças e
adolescentes. Não é o caso de Bartolomeu
Campos Queirós, Ana Maria Machado, em parte Monteiro Lobato, esse que veio para
encantar e morar no coração de crianças
e jovens. Para não se falar em Cecília Meireles
com o seu admirável Ou isso ou aquilo .
Normeide
Rios
- O que é preciso considerar para
escrever para o público infantojuvenil?
Cyro de Mattos
- A psicologia do que se pretende dizer
deve emergir e corresponder às razões e
emoções da criança e do jovem. A linguagem ser clara, sem perder o poético.
Ternura, graça, ritmo ágil, rima
cativante. Na prosa uma história que prenda do princípio ao fim, como aprendi
em minhas primeiras leituras das
revistas em quadrinhos, os meninos de meu tempo chamavam guri e gibi.
Normeide
Rios
- O conceito de literatura está sempre
mudando, de acordo com o contexto histórico e cultural. Qual é a sua visão de
literatura? O que é literatura?
Cyro
de Mattos - Forma de conhecimento da vida através dos sinais
visíveis da escrita. Não resolve os problemas econômicos, políticos, sociais e
religiosos. Mas torna a vida viável e viver
sem ela é impossível. Meu livro
de crônicas Alma mais que tudo traz esta epígrafe retirada de Drummond: Se procurar bem, você acaba encontrando/ Não a explicação (duvidosa) da
vida/ Mas a poesia (inexplicável) da vida. Se quiserem, é como digo neste
poema mínimo: Poesia. Meu amor. Minha
dor. Ó flor.
Normeide
Rios
- O que é literatura infantojuvenil?
Cyro
de Mattos - Caminhos da escrita que se abre para a formação
de uma mentalidade em crescimento. Dá prazer, faz sorrir, viajar na infância ou
juventude, enriquece e nada toma em troca. Como a que é feita para
adultos, sua matéria são as palavras - o
pensamento, a ideia, a imaginação –
estando ligada diretamente a uma das atividades básicas do indivíduo em
sociedade: a leitura. Busca alcançar o
leitor iniciante para uma formação integral, em que entra o eu mais o outro
mais o mundo. Seu espaço, como se vê, é o da iniciação à vida, que
cada um deve cumprir e viver em seu meio social.
Normeide
Rios
- A literatura direcionada a crianças e jovens durante muito tempo foi marginalizada por ser considerada
um gênero menor. Qual a sua opinião sobre isso?
Cyro
de Mattos - Esta é uma visão que se ressente de perspectiva
crítica. Um grande equívoco, preconceito calcado em uma ótica de que o que vale é o sujeito adulto, criança
e jovem ainda não são gente, seu universo pouco tem a dizer, dado que
superficial e inconseqüente. Isso é um absurdo adotado pelos
distraídos que ainda não perceberam que
a verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da consciência de mundo, situações e circunstâncias que cada um vai armazenando desde a infância.
Normeide
Rios
- Apenas recentemente a literatura infantojuvenil começou a abandonar o vínculo
com a pedagogia, que a marcava desde o seu surgimento, e buscou se afirmar como
arte literária. Como escritor de obras literárias para crianças e jovens, quais
as suas considerações sobre a relação literatura infantojuvenil, pedagogia e
arte?
Cyro
de Mattos - O livro predisposto a fazer a cabeça da criança e
do jovem revela deformações flagrantes. Tal predominância parece-nos sem
sentido. Estamos com Nelly Novaes Coelho
quando diz que a Literatura, em especial a
infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em
transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio
leitor//livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola. A escola é hoje o espaço em que a relação
entre o leitor e o livro mais se desenvolve na descoberta do eu mais o outro
mais o mundo. Natural que os princípios
ordenadores da vida neste espaço transmitidos contribuam para motivar o acontecimento
de uma nova civilização. De outra parte, a literatura infantojuvenil é arte que
se faz com engenho e linguagem sedutora.
As relações de aprendizagem e
vivência são fundamentais nesta
perspectiva que nos informa ser somente ela, como a que é feita para
adultos, capaz de devolver à criatura
humana o que é próprio da criatura
humana: inteligência e sentimento.
Normeide
Rios
- E sobre a tríade autor-obra-leitor?
Cyro
de Mattos - Ninguém escreve
um livro para ficar no fundo da gaveta.
O autor pretende com o livro
transmitir uma experiência de vida e estabelecer uma dialética de tácito
entendimento com o leitor pelas vias e arredios do ser, entre o belo e o feio, o alegre
e o triste , o riso e o rancor, o
amor e o ódio, a aventura e o risco, a vida e a morte.
Normeide
Rios
- Como autor, de que forma o senhor
busca interagir com o seu leitor?
Cyro
de Mattos - Comprometido
com as verdades essenciais do ser humano. Cheio de sonho.
Normeide
Rios
- Como é o processo de criação de suas
obras literárias infanto-juvenis? Quais os elementos que o senhor considera
essenciais para garantir a qualidade artística das produções?
Cyro
de Mattos - É uma viagem gratificante sob os instantes do
menino e jovem. Retorno ao tempo
colorido do antigamente, que já vai longe. Reúno pedaços da infância e adolescência que os homens trancaram na alma. Noto
que os componentes estruturais do texto resultante desta pulsação do coração
devem corresponder ao mundo da criança ou do jovem. Tanto na forma como no
fundo. Entra nisso como ingredientes
importantes a espontaneidade e a habilidade, que o autor deve possuir na
criação de um livro de poesia ou prosa
de ficção para crianças e jovens. A expressão deve se manifestar com
simplicidade no aparentemente
fácil. .
Normeide
Rios
- Como aconteceu o seu primeiro contato com livros literários? O que costumava
ler na infância e adolescência?
Cyro
de Mattos - Quando era pequeno comecei lendo revistas em
quadrinhos. Descobri Júlio Verne,
Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Poe e Dickens na biblioteca de seu Zeca
Freire, o dono da farmácia em minha
cidade natal, e também na livraria e papelaria
A Agenciadora.. Quase adolescente fui estudar interno em Salvador, e, na
biblioteca do Colégio Maristas, foi a
vez de ler Castro Alves, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo,
Fagundes Varela, José de Alencar, Humberto de Campos e Machado de Assis.
Ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e nesse tempo gostava de visitar pela tarde a
Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile. Sedento, buscava ali o pote da
leitura. Foi o tempo do
conhecimento de Dostoiewski, Tolstoi,
Checov, Katherine Mansfield, Sartre, Kafka, Pessoa, Brecht, Joyce,
Faulkner, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa,
Clarice Lispector, Adonias Filho, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Jorge
Amado, Autran Dourado, Aníbal Machado,
Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Mário de Andrade, Drummond, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo, Jorge de
Lima, entre tantos admiráveis escritores que me ensinaram a ver melhor a vida, equilibrar-me entre vazios, crenças e verdades, que se formavam tecidas com
os fios eternos do imaginário.
Normeide Rios
- Qual a sua opinião sobre a atual
produção de obras para crianças e jovens?
Cyro
de Mattos - Muita boa, digna de qualquer literatura no mundo.
Lembro Bartolomeu Campos Queirós, Elias José, Ana Maria Machado, Lígia Bojunga,
Sylvia Orthof, Mário Quintana e outros.
Entre nós baianos, gosto da literatura infantojuvenil de Gláucia |Lemos..
Normeide
Rios
- No panorama nacional, como se
posiciona a produção de escritores baianos?
Cyro
de Mattos - Há quem diga que a melhor poesia brasileira
está sendo feita hoje no Nordeste e, em especial, aqui na Bahia. Concordo.
Ressalto que contistas e alguns romancistas daqui são também de qualidades insuspeitadas. A literatura brasileira está entregue hoje em
boas mãos aqui na Bahia. Não entendo por que ainda não se escreveu uma crítica e ampla História da Literatura Baiana, de Gregório de
Matos aos tempos atuais. Seria um projeto para ter o apoio do Governo do Estado, executado
por um corpo de professores
universitários e autores expressivos, que preencheria certamente uma omissão no mínimo lastimável.
Normeide
Rios
- Suas obras infantojuvenis são
produzidas tanto em verso quanto em prosa. Há predileção do autor entre essas
duas formas de escritura?
Cyro
de Mattos - Sinto-me à vontade na prosa como no verso. Quem
determina se prosa ou verso é o assunto,
o momento, a inspiração ou seja lá o que
for.
Normeide
Rios
- Cyro de Mattos recorre a lembranças da infância e da adolescência para criar
seu mundo ficcional? Pode-se dizer que Histórias
do mundo que se foi é um livro de “memórias da infância”?
Cyro
de Mattos - A infância é uma das vertentes de minha poesia para adultos, da prosa de ficção para crianças e jovens. Como acontece
em Histórias do mundo que se foi,
“memórias da infância” transfiguradas como ficção podem ser encontradas também
em Roda da infância, novela que está
acabando de sair do forno da editora
Dimensão, e O Menino na memória,
pequeno romance juvenil ainda inédito.
Normeide
Rios
- O
menino e o trio elétrico é a história de um sonho que se realiza, mas é
também uma narrativa que aborda questões culturais e diferenças sociais. Houve
o objetivo de fazer denúncia social? Qual o papel da literatura infantojuvenil
frente aos problemas sociais e econômicos presentes na realidade do leitor?
Cyro
de Mattos - Não tive intenção de fazer denúncia social na
história triste do Chapinha com final
feliz. Do texto escorre humanismo
social entrelaçado com a poesia da vida.
Não forcei nada. Simplesmente busquei representar o real com ternos sentimentos de mundo, ser coerente frente aos problemas e contradições
do carnaval hoje em Salvador. Alguns
críticos disseram que fui o primeiro a trazer a realidade aguda do carnaval de
hoje, em Salvador, para a literatura infantil, numa história bem
concebida, escrita com espontaneidade,
solidariedade e amor.
* Entrevista concedida à
professora Normeide Rios, da Universidade Estadual de Feira de Santana, incluída na tese de mestrado Os caminhos da literatura infanto-juvenil
baiana: em sintonia com o leitor, apresentada na Universidade Estadual de
Feira de Santana, aprovada com distinção e louvor. A dissertação foi publicada
como livro pela Editora da Universidade Estadual da Bahia – EDUFBA.
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