O TREM
Cyro
de Mattos
A inauguração da estrada
de ferro aconteceu com música. A bandinha tocou marchas, dobrados e maxixes
para saudar o desembarque feliz dos primeiros passageiros. Construído pela
administração da companhia que implantou a estrada de ferro, um barracão serviu
como o primeiro ponto oficial do desembarque.
O trem passou a fazer
parte da vida da cidade.
Na partida, os carregadores colocavam apressados malas e
embrulhos pelas janelas dos vagões. Reservavam os lugares melhores para os seus
fregueses conhecidos. Na chegada, sempre os mesmos carregadores recebiam malas
e embrulhos pelas janelas dos vagões.
O trem era uma coisa viva
que partia e chegava, trazendo as cargas de peixe, caju e coco. Pelo apito
ficava-se sabendo a hora certa da partida e chegada. Encontros eram marcados
pelo apito do trem, de manhã e à tarde, às vezes importantes.
Nos rastros do sonho, vejo
a trem fagulhando, atritando, apitando. No vento, no verde, na várzea. Entre os
passageiros segue com a conversa tola, velha a mansa. Gente de alpercata fuma
na tarde de verão seu cigarrinho de palha.
Quando passa, o trem fala
com as pessoas que estão no terreiro, nas portas e janelas das casas à beira da
estrada.
Na aurora, na tarde, na
fumaça, lá vai o trem.
Quando ele deu o último
apito na estação velha, não ficou fogo morto nem sucata. Nem qualquer sinal de fumaçazinha se perdendo
no longe.
No menino permaneceu um
percurso luminoso feito por vagões, indo e vindo, subindo e descendo por
trilhos que tinham um tom marcante de vozes coloridas na paisagem.
Vagões levavam dias de sol
e chuva, traziam a estação de magníficos sabores.
Moleques vendiam cordas de
caranguejo na plataforma. Vovó Maria Conga mercava beiju de Água Branca,
lugarejo que ficava distante alguns quilômetros da cidade pequena. Do tabuleiro
de Vovó Maria Conga vinha o cheiro de mingau quente, atraindo na manhã os
fregueses com o rosto de sono.
O trem dava ao menino
momentos alegres de aventuras indescritíveis. Certo sentimento humano corria
com o vento e formava com a natureza uma relação amiga.
Pela janela desfilavam
vales e outeiros.
Gado manso no verde subia
a encosta.
No céu nuvens como barcos,
almofadas, rochas brancas.
O sol brilhava a manhã com
fios de ouro nas folhas de capim.
A cachoeira batia nas
pedras uma pancada formosa.
Os olhos do menino
viajavam na paisagem.
Quando mais olhavam, mais
queriam olhar.
E de olhar tanto nunca se
cansavam.
Aos sábados havia uma
algazarra na chegada.
Atos, ruídos e gestos
propagavam-se pela plataforma.
No desembarque, como se fosse feita
de papagaios e periquitos, mais aumentava a algazarra.
No peito do menino, a
tarde reverberava as cores do verão.
A paisagem acomodava-se
ali no quarto, os olhos semitontos de sono. Reaparecia num sonho quente e puro,
descendo e subindo pelos campos verdes do pequeno coração.
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