Discurso do Herói de Palmares
Por Cyro de Mattos
Ao receber a Medalha Zumbi dos Palmares da
Câmara de Vereadores de Salvador, em sessão solene, online, às 20 horas,
no dia 3 de novembro de 2020.
Boa noite a todos.
Ilustre jurista, vereador e confrade
Edvaldo Brito.
Primeiro quero agradecer esse momento a Deus, depois à minha esposa Mariza, que tem sido minha base
durante 52 anos de casados, aos meus três filhos André Luís, Josefina e
Adriano, que tanto me motivam para que
eu seja um cidadão digno, e aos meus seis netos, Rafael, Pedro Henrique,
Gabriel, Luís Fernando, Marizinha e Murilo, que me dão alegria e certeza de que
quando eu estiver em outra dimensão continuarei ainda aqui, neste velho mundo,
em cada um deles.
Faço um agradecimento especial ao
professor emérito e jurista consagrado, vereador Edvaldo Brito, o autor do
projeto para que esta Casa me concedesse a distinção. Muito me honra ter sido
colega daquele estudante pobre na turma de 62 da Faculdade de Direito da
Universidade Federal da Bahia. Aquele rapaz de corpo comprido, que foi o orador
da turma. Esse homem de cor, cidadão digno, um símbolo vitorioso da negritude
na Bahia e no Brasil. Essa criatura rara, de cultura adquirida com esforço nos
livros, brilho de sua inteligência, crença na força dos antepassados, e que se
sabe herdeiro da fraternidade e compromissado com a verdade, portador do axé,
que, como se diz no candomblé, é “a luz do dia”. É por sua iniciativa generosa que
estou aqui sendo homenageado, apesar de surpreso até agora ao receber essa
láurea, e comovido.
Certa vez minha tetravó
materna contou à minha trisavó que contou à minha bisavó que contou à minha avó
que uma gente que vivia nas suas aldeias foi retirada da África como bicho,
pior do que bicho, para a escravidão no Brasil Colonial. Filho foi retirado da
mãe, marido da mulher, irmão do irmão, acorrentados foram trazidos com os
rostos tristes, até que se viram jogados para o embarque como um fardo
deplorável no porão fétido do navio negreiro.
Longe, tão longe, foi ficando atrás na savana a lágrima de Deus. No rumo desconhecido, seguia aquela gente na
carga desgraçada, feita com vozes sofridas na cena lastimada. Uma pobre gente solitária
vagando pela imensidão das ondas salgadas. Viajava marcada sem perdão, o corpo
amassado, a fome e a sede nas horas de aflição, menos para o traficante branco,
que conduzia o navio por entre as águas de cobiça e perversidade.
No poema “Navio Negreiro”, de meu livro Poemas
de Terreiro e Orixás, dou minha versão dessa sinistra embarcação com sua
carga sofrida numa rota dos infernos. Eis
o poema:
Navio Negreiro
não
adiantava
gemer
não
adiantava
mugir
não
adiantava
viver
muito
melhor
morrer
funda
a ferida
amargo
o ferrão
ardido
o sal
aguda
a solidão
negro
negro negro
o
mugido anuncia
a
sede e a fome
de boi em agonia
todo
esse mar
é
a desgraça
não
branca
que
até hoje
das
entranhas
rola
nas ondas
o
seu mal-estar
o
despejo na praia
diz
de um tesouro
alimentado
do pai
alimentado
da mãe
do
filho e do irmão
como
ofensas no amor
do
suor fabricado
para
a saborosa canção
do
constante senhor
Na
rota da desgraça foi submetida essa gente ao trabalho servil do Brasil
colonial. Alguns negros inconformados fugiam da senzala em busca da liberdade
na mata fechada. Não conseguiam reter o suor e a amargura que derramavam todos
os dias para irrigar o canavial do senhor de engenho. A fome do Brasil açucareiro era insaciável, nunca
se satisfazia com o trabalho de graça dado pelo braço escravo. O feitor com os
cachorros logo ia atrás do negro fujão, que terminava castigado com a sua
afronta no pelourinho. Treze, trinta, cinquenta chibatadas. Muitos não
suportavam o castigo, morriam esfacelados. Tristes, os outros olhavam, não podiam fazer
nada. Calados, lambiam o vento, que soprava no peito a sina feita de atrocidades,
assim guardadas como ruínas dos dias nos gemidos mudos.
Quem de novo fugisse e fosse apanhado, o
remédio agora era cortar um pé, para que o exemplo fosse melhor disseminado. Minha avó contava que em outros casos de
insubmissão a língua era cortada daquele negro falador, inflamando os outros para
fazer a revolta. Contou mais que minha tetravó tinha o seio farto, foi lambido,
bebido como gostosura o seu leite puro para o anjinho do senhor não sucumbir. Senhores
bigodudos, sisudos doutores provaram do leite morno e doce, saindo ilesos das
sombras da morte. A paga daquele ofício era
na roupa lavada, engomada, no fogão aceso e abanado, no asseio de inúmeros cômodos,
no carrego de feixes de cana, em tudo que tinha o gosto amargo para que a vida
continuasse no seu ritmo invariável de dor e solidão.
O mel da cabaça da negrinha era para
servir a seu dono, que deixava o fel nas entranhas. Matava a sede do que batia
os dentes, montava nela com todas as forças que pudesse reunir e perfurava, sem
remorso, umas carnes tenras. Arrancava os tampos com sua flor guardada entre as
pernas, olhe lá, não tens que gritar, é pra ficar abafada nos lamentos,
entorpecida pelo som e a fúria dos meus punhos, o querer é só meu, ninguém se
atreva a interromper. Passava o inverno,
passava o verão, o tempo e as dores essa gente desgraçada ia moendo, remoendo.
Como devia ser, os céus ordenavam. As horas se resumiam na fome e na sede de animal
em passividade e agonia. O final todos sabiam, uma coisa, que teve a vida toda em
luto perpétuo, era enterrada na cova rasa, mais nada.
E dizer que o Brasil foi carregado nos
ombros dessa gente vítima de mazelas, violência e injustiça. De toda sorte de vilanias,
preconceitos, desigualdades. Essa gente da qual também procedo, que deu o suor
de sol a sol ao jugo do senhor branco e de volta recebeu a canga. O Brasil tem
uma dívida com o negro que é impagável. Esquecido dessa dívida, ainda se vê
hoje, em pleno século vinte e um, atos pusilânimes que alimentam a mancha que
envergonha, essa chaga que subtrai e faz da vida um horror com fendas
acumuladas de aversão, feridas que não curam.
Ontem na televisão, diante do rosto da
humanidade pasma, a notícia veio com a cena do negro que teve a vida esmagada
pelo policial branco. Tiros foram desfechados
nas costas de outro, que, indefeso, tentou fugir da perseguição como fúria
canina. É comum a rejeição ao negro, considerado ao longo dos séculos como um
ser inferior, de gradações baixas, daí não ser nada de mais ser visto até hoje no
semblante inocente dele o ladrão ou o assassino.
Diante de tantas atitudes para alimentar o
império do mal, destruir o espírito universal do bem, mais que nunca é preciso
resistir, denunciar, lutar para desfazer a mentira e ao invés disso gritar a
todos pulmões que a liberdade é o valor maior, a igualdade não é privilégio de
ninguém, Deus fez todos nós com a mesma alma, o amor é o sentimento mais forte.
Devo lembrar que o Quilombo dos Palmares
era formado por três aldeias. Aí por volta de 1640 viveram cerca de dez mil
quilombolas. Eram fortes e contentes, plantavam de tudo e não se serviam da
terra como fonte única de riqueza, através do açúcar. Cada família em Palmares
ocupava um lote de terra, o que tirava dela era para o seu sustento. Em 1670,
já inúmeros povoados cobriam muitos quilômetros de terra na serra do Barriga,
em Alagoas. Palmares havia se
transformado em um Estado, situado na borda do litoral do mundo canavieiro.
Tornava-se por isso mesmo em grave ameaça ao império do açúcar, com seu sistema
fixo calcado no braço escravo, em benefício exclusivo do senhor de engenho.
Tinha
uma população de trinta mil almas quando sob o comando de Zumbi sucumbiu às
investidas de Domingos Jorge Velho, chefe de um exército armado de canhões,
constituído de nove mil homens. Sucessor do trono de Ganga Zumba, Zumbi
mostrara ser um guerreiro implacável antes mesmo de ser derrotado por Domingos
Jorge Velho. Há quem diga que ele se pareceu aos heróis de guerra Aníbal,
Alexandre, Ciro e Napoleão. Diferente deles porque não combateu para conquistar
territórios e glórias, mas para fazer de Palmares uma flecha a ser atirada para
o coração da liberdade.
Muitos historiadores esconderam dos
compêndios oficiais a grandeza do caráter de Zumbi dos Palmares, mas a verdade
prevaleceu. Ele se tornou um verdadeiro herói do Brasil, símbolo da resistência
negra perante o ferro do colono usurpador. De maneira que a essa altura só me
resta dizer nesse momento de especial reconhecimento o quanto me dignifica
receber da Câmara de Vereadores de Salvador, a mais antiga do Brasil, uma
honraria com o nome desse herói negro. E assim terminar minha fala com um poema
inspirado nessa figura, que por sua coragem, amor à liberdade, lealdade ao seu
povo, tornou-se um marco elevado da tão esperada abolição.
Zumbi
Falo
Zumbi,
digo
Palmares,
ritmo
da liberdade.
Falo
Zumbi,
digo
Palmares,
batuque
da igualdade.
Falo
Zumbi,
digo
Palmares,
manual
da fraternidade.
Falo
Zumbi,
digo
Palmares
sem
o açúcar insaciável.
Falo
Zumbi,
digo
Palmares,
gente
em grito indignada.
Falo
Zumbi,
digo
Palmares,
no
abismo a África salta.
Luzes
da Manhã,
força
do amor
pelo
chão e nos ares.
Espero que minha voz como um grão nos
ventos da resistência venha se juntar ao movimento que vem lutando nos anos
pela sanidade da razão, expandindo-se para a valorização e conscientização do
universo do negro.
A todos, o meu muito obrigado por esse
momento gratificante em minha jornada de vida.
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