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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

 

Poemas do Negro

   Cyro de Mattos

 

 

Negrinha Benedita 

 

Por causa

dum frasco

de cheiro

apanhou

de chibata.

Os outros

assombrados

não puderam

fazer nada.

 

Sem andar

dias ficava.

Quando sarou,

falou ao vento

que ia embora.

Pelo mato

foi voando,

escapou

da cachorrada.

Teve sede,

teve fome,

levou espinho

pela cara.

 

Para trás

não olhava.

Com uma

espada afiada

que lhe deu

uma mão oculta

um dia viu

no quilombo

que ali era

a sua morada.

 

Aconteceu

que depois

a cabeça

da sinhá

amanheceu

decepada.

Ninguém viu

como se deu

na escuridão

daquela noite

a revanche

assim marcada.

Por causa

dum frasco

de cheiro

que ela pegou

pra ser cheirada.

 

Nação

 

Gritos como sinais

ecoam na planície,

saltam centelhas

das vozes ligadas

na corrente frenética

embarcada na África

para a Bahia negra

caindo no transe.

Nenhum outro batuque

trepidando na alma

tem mais grandeza

do que esse que faz

as distâncias perto,

joga raios do céu,

bate envolto em magia.

Canta, trepida, embala,

precipita ventos, falas

nesse tum-tum febril

que o coração arrebata.

 

Voz do Negro

 

Saltava do peito o céu

pela savana infinda,

célere alcançava

a terra, a água e o ar.

 

Arrancada do ventre,

açoite e tormento,

no ferro do porão

carregava lamentos.

 

Presa pelo açúcar,

lenta, entorpecida.

Não jogava raios,

sem asas o vento.

 

Para onde fosse

os ossos doendo,

em rigor oprimida

pelo açúcar sedento.

 

Virgindade

 

Da cabaça o mel

para servir a seu dono,

que deixava o fel.

 

Pra matar a sede

do que batia nos dentes

e arrancava a flor.

 

No mês mais um tanto

comido pelo senhor

calmo por enquanto.    

 

Ama de Leite

 

Seio puro e farto

lambido, bebido

para que o anjinho

não sucumbisse.

 

Cantiga baixinha,

monótona, serena,

dava soninho bom, 

o sonho aquecendo.    

 

Senhores bigodudos,

sisudos doutores,

quantos provaram

e saíram ilesos?

 

A paga na roupa

lavada, engomada.

No fogão, no asseio

a vida continuava.

 

O tempo as dores

moendo, remoendo.

Como devia ser,

o céu ordenava.

 

Banzo

 

O que é, sei não.

Difícil de dizer

dessa coisa triste, 

difícil de saber.

 

Bebida que desce

pra esmorecer,

dentro de mim

sem compadecer.

 

Não desgarra

quando agarra

meus passos, sós,

sem esperança.

 

Dá pena quando ouço

essa voz de África

com brilho forte do sol,

o que ficou pra trás.

 

Dá vontade de sumir.

 

·       Estes poemas ora publicados pertencem ao livro Poemas de Terreiro e Orixás, das Edições Mazza, BH, 2019.

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