O Coração Selvagem de Clarice
Lispector
Cyro de Mattos
O romance abolia o tempo linear e
usava o fluxo de consciência para que a personagem no pensamento exprimisse
suas incertezas e tormentos. Nas circunstâncias do tempo exterior passava a ser
vista por meio de outro discurso, que fazia indagações sobre um coração
selvagem, pulsando sem encontrar algo que o fizesse em harmonia com o
mundo.
A ficcionista inovadora chegava para revolucionar na forma de contar a
vida de Joana, personagem de caráter impulsivo, destemida, que tentava
encontrar a sua verdade na vida. Não gostava de pessoas bondosas e de maneiras
agradáveis. Desde pequena sente-se deslocada da vida exterior, adulta se vê
tomada pelas incertezas de como aconteciam suas maneiras de ser perante a
existência.
Ao escrever sobre a vida de Joana, que ficou sem a mãe e o pai, a autora,
sem o uso do tempo linear, mostrava com a aproximação do leitor às
circunstâncias existenciais da personagem como se contraponteavam as relações
críticas de uma mulher no contexto familiar. Clarice Lispector não queria mais
a fabulação e a linguagem tecidas com a coerência da ordem exterior, mas como
fatores mutilados pela desordem inventiva do sistema verbal, a frase construída
com a veemência de inconsequências, incoerências formais que preferem dialogar
no silêncio, meditar com o vazio, pois é no vazio que se passa o tempo. Como
certa vez ela disse em Onde estivestes de noite? (1974, página 34), “mas quando se trata da
vida mesmo – quem nos ampara? – pois cada um é um. E cada vida tem que ser
amparada por essa própria vida desse cada-um.”
Tentando pôr em frases a mais oculta e sutil sensação, desobedecendo a
necessidade exigente de veracidade, Clarice Lispector permitia-se em seu
romance de estreia apenas a transmissão da continuidade do clima
narrativo. Com expressão própria e
pioneira elaborava um discurso que conservava a linguagem dizendo o máximo no
mínimo da frase, com cortes poéticos de dor pesada. Operava a palavra como
lâmina, a causar profundidades na leitura arguta que empreendia sobre os seres
vivos e as coisas permanentes, nas relações e nos estados de alma em que o
coração selvagem vibra e emerge de desafios e anseios.
O romance de estreia
de Clarice Lispector não se processa como simples relatório amparado por
linguagem sedutora e enredo que prende para o entretenimento. Para a autora,
até na lírica do trivial se requer do romance invenção na forma de romper com
os meios tradicionais de narrar uma história, oferecer acontecimentos que nem
sempre resvalam por caminhos previsíveis, fáceis de apreensão pelo leitor
apressado, que não consegue vislumbrar o sonho quando o processo criativo usa
de reticências para dizer da existência. Por temperamento, vê-se incapaz de
tocar em assuntos como a náusea, por exemplo, com um enfoque provido de
introspeção na frase, pois sempre transmite assim sensação de que a história não tem desfecho
lógico decorrente do feito extraordinário.
O desconhecido vicia em Clarice Lispector, o que revela é tão
novo, surpreendente, que se tem a impressão de que raros ficcionistas entre nós
tenham realizado como ela a proeza de falar do nada para desvendar o
tudo. De descobrir pulsações onde existem reflexos da vida no estreitamento do
peito, como se os batimentos do coração ocorressem com o seu brilho aceso para
iluminar a parte noturna do ser, de tal modo as situações emergem de um espelho
humano com suas possíveis refrações.
Para tanto é preciso meditar com o silêncio e dialogar com o vazio para
extrair dessa ligação novos sentidos do mundo.
Não se
queira em Clarice Lispector de Perto do coração selvagem uma história
representativa de vida, que tenha começo na sequência cronológica do tempo,
motivada pelos feitos extraordinários desdobrados para um final coerente. A abstração na lógica do real se dá porque a
criatura humana é o ser do tempo. É cíclica a existência, que não tem princípio
nem fim. Com seus personagens
atormentados, agora procedem às avessas na órbita objetiva das circunstâncias
abstraídas da realidade exterior.
Vale
lembrar que, no novo cenário herdado dos escombros de duas avassaladoras
guerras mundiais, o existencialismo era a concepção de mundo que a filosofia
oferecia para o ser humano caminhar no que parecia ser o abismo da razão. Dentro
dessa nova corrente de pensar o homem na órbita de suas circunstancias
existenciais, Heidegger tem a concepção de que a criatura humana é um ser do
tempo, para Sartre um ser da morte. A concepção da vida nessas formas
existenciais do pensamento iria ser aproveitada por alguns de nossos
ficcionistas no plano de suas criações.
Em Adonias Filho, o homem trágico era
transportado da Grécia para viver na infância da selva situada no sul da Bahia,
submisso às forças do destino, que o tratavam como um servo da morte em
ambiente primitivo. O romancista de Memória de Lázaro reproduzia a
concepção de Faulkner quando afirmava que o ser humano construía o seu destino
trágico, era ele mesmo o agente da infelicidade e da loucura, das forças que o
levam à dor e às paixões. Em Clarice Lispector, as essencialidades humanas
permaneciam mergulhadas no silêncio e no vazio das coisas destituídas de
datas. Como ser do tempo, o homem não é
divisível porque movimenta-se dentro do tempo, habita um território sem
limites, em silêncio, quando e onde apenas ele é.
Como
elo de um ciclo que existe entre as coisas vivas e as não vivas, transita ao
largo de uma sofrida aprendizagem até se encontrar definitivamente na união
sensual do dia para a sua hora mais crepuscular.
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