Romance em tempo de ternura
Cyro de Mattos
Aníbal Machado estreou em 1944 com Vila Feliz, contos que seriam acrescidos
de mais sete histórias inéditas, formando o volume de Histórias Reunidas (1959). Compendiado como autor de obras-primas
com os contos “A Morte da Porta-Estandarte”, “O Iniciado do Vento” e “Viagem
aos Seios de Duílio”, publicou ainda a coletânea Cadernos de João (1957), em que reúne breves meditações
lírico-filosóficas e poemas em prosa. João Ternura (1965, rapsódia
romanesca, teve publicação póstuma, após lendária gestação durante o período de
quarenta anos.
Na longa gestação do romance, cujo personagem tem uma alma impregnada de
visões do mundo numa paisagem que não lhe é vulnerável, considera-se que o
clima em que se cumpre viver pelo personagem conota no real coerência e
naturalidade. Daí ser compreendido por particularidades pessoais onde pulsa a
ternura. Na peregrinação para escrever o livro, contemporâneos que viveram no
ambiente íntimo do criador de João Ternura informaram que Aníbal Machado passou por
momentos difíceis de sua jornada criativa, na iminência da conclusão ou
engavetamento dos escritos.
Aníbal Machado ressalta na introdução de João Ternura:
É possível que alguns leitores, de
tanto ouvirem falar neste livro,
o recebam de pedras na mão.
Especialmente os da geração mais
antiga. Tal seria a minha reação,
se, em vez do autor, fosse aqui
o leitor (pág. 3).
Valeu a pena a espera, tantas são as lições carregadas de humanismo que o
herói terno-lírico transmite nas cenas fomentadas na rotina obediente ao seu
próprio ritmo de contradições. Porque é simples, nascido cercado de desvelos,
inquietações e expectativas, esse personagem solto na realidade aparentemente
generosa constitui um grito lúcido contra a miséria da existência humana. Na
pauta de egoísmo corriqueiro, em que
funciona a vida competitiva, o que ele vê não é um cenário desalentador,
mas a necessidade que tem a natureza humana de seguir em frente, dentro de uma
normalidade, que gera movimento e comportamento entranhados na rotina de
expectativas e repressões.
Através de gestos ingênuos, o personagem torna-se uma reflexão profunda
da vida. Sem qualquer espécie de partidarismo ou pieguice, é cativante no
itinerário das ocorrências que preenchem a biografia lírica cercada de
intenções pequenas. Não se dá à reflexão em face de gestos desconcertantes,
porque as contradições e dúvidas vêm desde os primeiros passos na infância
quando o mundo adulto da incompreensão e insolência começa a existir até os
momentos desagregadores das qualidades humanas.
Na cidade grande que esmaga, a vida mostra-se tal qual ela é, pulsa
tendo como o principal os dias constituídos de indiferenças, incoerências que
não fazem sentido diante do racional.
Esse passageiro tranquilo, símbolo do vulgar ligado na ternura, “esse pobre João ternura que nas nuvens
melhor ficaria, uma vez que sua simplicidade e inocência nem sempre encontravam
resposta num mundo em que não conseguiu (e nem suportava) atingir a chamada
idade da razão e das conveniências sociais que tão tristemente já alcançamos”
(pág. 5). Ele não mede a vida com seus despropósitos porque a simplicidade é a
tônica da sua mentira verdadeira, da qual emerge a vulgaridade das ideias, que
nos sabem seres estranhos formados com a natureza das próprias conveniências.
Até mesmo nas reações ingênuas diante da morte quando tinha a ilusão que
poderia depois continuar de olhos abertos. Alguns anos em silêncio, sem direito
à vida, a espiar com prazer a sucessão das novas gerações no Brasil
progressista, com o seu crescimento material, a grandeza humana de seu povo,
enfim, com os homens vivendo com simplicidade, cordiais nas atitudes para longe
da exploração e do medo.
Frágil e forte, o personagem do romancista mineiro acredita na inocência
como uma coisa útil e, por ser terno, não se corrige com as decepções que a
vida oferece.
Aníbal Machado explica:
E você pensa que ele vai se
corrigir? Duvido. É possível que um dia
ainda abra os olhos. Isso a poder
de muita cabeçada. Precisa primeiro
sofrer na pele, levar trancos. Mas esse
diabinho parece que não sofre,
nem toma conhecimento da realidade. Não
analisa os fatos. Nem
raciocina. Falta-lhe espírito
objetivo... (pág.125).
Em sua maneira de contar com o mundo sem merecer inconformismos, vê-se
que João Ternura acha tudo natural, a cegueira de lidar com a vida sem ver nela
o sofrimento o absorve de tal maneira que suas relações com o cotidiano chegam
a dar pena. Ele está sempre consciente de que entrou na vida inconsciente como
qualquer um de nós. Não entrou nesta briga pensando em Dom Quixote, mas apenas
trazendo como arma e bagagem uma maneira ingênua para sentir os seres humanos
como agentes naturais das coisas que precisam ser alcançadas. Nessa visão
desprevenida de que viver é rolar na vida com simplicidade, sem se importar com
as agruras, manter com ele qualquer tipo de conversa que analise a realidade
tal qual ela é não será proveitoso. Ele não pode entender, por exemplo, que há
em cada esquina pelo menos meia dúzia de desgraçados precisando de socorro. Não
consegue conceber o mundo como um nunca acabar de murros, com os fortes, em
geral estúpidos, pisando nos fracos.
Na escrita reveladora de candura, contradições e desconcertos, a
fabulação sincopada em cada episódio sugere o ambiente necessário para revelar
o conflito contado em determinadas passagens. Com isso quer traduzir a criatura
humana em seus becos sem saída, prisões e medos. Mostrá-la com a certeza de que quando se tem
a natureza moldada com humildade a vida só pode ser vista no plano da realidade
oposta à dos valores materiais, não permitindo que se pise nela com a vontade
de deter as coisas postas no mundo para satisfazer desejos e ambições.
João Ternura nos faz refletir sobre a humanidade caminhando nas
pegadas da distância de uns para com os outros, projetando-se tranquila,
aparentemente generosa, na expressão feliz o rosto dá a entender da existência
de uma realidade proveitosa. Como portador da brandura, esse personagem
intrigante informa sobre o nosso gosto de apertar o nó na garganta, sem variar
nosso apetite voraz persistente de pender
para o egoísmo, que vem de longe.
O personagem lírico-vulgar resulta de inegável força criativa de autor
experimentado, consistente em sua experiência de vida com bases humanísticas.
Sabe valorizar sua mensagem pela atualidade vista nos gestos primitivos dos que
se dizem civilizados, vivendo em ritmo tumultuado de hoje, cada vez mais
intenso e veloz da cidade grande, “insone,
cruel... maravilhosa ao longe, terrível ao perto. O texto que se move para
a ingenuidade do personagem distante da realidade exterior, atinge momentos
oníricos de rara beleza, de sonho sustentado na gravidade do diálogo difícil de
ser formado nas zonas da morte onde tudo se dissolve.
A economia vocabular, usada como uma constante para suportar o ritmo
sugestivo da narrativa, a linguagem descontínua, composta de aforismos,
artifícios, inversão de frases, acrobacias conscientes nas palavras, todas
essas invenções formais com soluções só encontráveis na melhor ficção
brasileira situam João Ternura num
fluxo de beleza no qual se integram as fronteiras da poesia e do prosaico.
Como adianta um escritor da época, não é exagero afirmar que em sua
construção afetiva encontra-se aqui a síntese do comportamento literário de
Aníbal Machado. A mesma síntese cristalizada na escrita de Histórias Reunidas ou
Cadernos de João. Nesse livro póstumo do escritor mineiro, o excelente
prosador sente-se como que à vontade. O pleno domínio da escrita poética
novamente emerge do espírito sensível com sutilezas líricas, no plano de
imagens o sonho circula saliente sob o ritmo que prende. Ora acelerado, ora lento, irrompe nas
passagens da prosa depurada com fragmentos, vozes e figuras de um mundo
incompreensível que nos impinge viver como estranhos e assustados. Trata-se de
texto com técnica renovadora do discurso literário, mostrado como o real
transfigurado no literário passa a se identificar com a poesia imbricada na
vida.
Mas João Ternura não é apenas
um texto com a forma apurada em sua grandeza técnica. Nas páginas de um
discurso lírico bem construído, a vida pulsa com sentimentos que se mostram
precisos nos momentos em que se desenham como achados felizes. É sentimento
esteticamente realizado com sua mensagem forte formulada no diálogo aceso para
iluminar o ser perdido na memória primitiva do tempo. O clima que se apreende
no mundo singular de João Ternura
muito se identifica com o espírito de seu criador. É como se o diálogo do
personagem lírico-vulgar com a rotina das coisas não se esgotasse em si mesmo
perante o lado incompreensível da vida. E fosse o grito lúcido do espírito
tranquilo do próprio Aníbal Machado. Da razão penetrante e sentimento poético
que se atraem e se unem para dizerem que o homem quando vive apoiado em padrão
frágil de comportamento, imbuído de ternura, desligado da realidade exterior em
seu lado cruel, não tem salvação para o pobre coitado, a vida deixa que se vá
em sua clausura de alheamento até sucumbir acossado pela sua própria
simplicidade.
Ler essa fábula moderna, percorrer o texto rico de significados e
significantes, é rever a figura de Aníbal Machado. O homem culto, sensível,
atencioso, de bons préstimos. Durante anos influenciou geração de
contemporâneos por meio de artigos, conferências, diálogos e sugestões. Como
testemunham dois escritores de seu tempo, foi um escritor que compareceu à lide
literária dotado de simplicidade, não se preocupando com o poder e a glória,
não usando ressentimentos para ferir o talento dos companheiros de militância
artística.
Por ser criatura sem vaidades, cada vez mais rara entre os habitantes do
país das letras, onde infelizmente circula o duvidoso como se fosse o
verdadeiro, já podemos também dizer, como bem lembrou Carlos Drummond de
Andrade, ao concluir a leitura do lendário livro, que ficamos sem saber se o
criador de “João Ternura morreu
efetivamente ou se é apenas uma de suas mágicas.”
REFERÊNCIAS
MACHADO,
Aníbal. João Ternura, romance,
Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1965.
-----------------------------Histórias reunidas, Livraria José
Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1959.
------------------------Cadernos
de João, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro,1957.
ANDRADE, Carlos Drummond de.
“Balada em Prosa de Aníbal Machado”, in João Ternura, José Olympio Editora,
1957.
* Cyro de Mattos é escritor premiado e publicado no
exterior.
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