MACHADO DE ASSIS: ESTÁTUA VIVA
Raquel Naveira
A pessoa que mais tenho visto e de que
me lembro aqui no Rio de Janeiro é o escritor Machado de Assis. Não foi à toa
que vim morar na rua das Laranjeiras. Algumas vezes caminho rumo ao Largo do
Machado, com suas barracas de livros usados, de flores (e eu “por flor tenho
loucura”, como dizia uma música de Cássia Eller); suas mesas de pedra, onde
idosos jogam baralho e xadrez; sua entrada do metrô, conduzindo filas intermináveis
de gente pelos subterrâneos que levam
aos bairros, às florestas, aos estádios, às favelas e às praias. Passo antes
pelo concorrido sinaleiro em frente à suntuosa Igreja Matriz de Nossa Senhora
da Glória, que lembra a de St. Martin em Londres. Às vezes, quando fecho os
olhos por alguns instantes, pois creio em viagens no tempo, imagino o espaço
entre a Igreja e o Largo forrado de antigos tílburis, aqueles carros de aluguel
de duas rodas, dois assentos, com capota e sem boleia, puxado por um só cavalo,
que servia de condução na época da corte. Dona Carlota Joaquina passando com
sua luxuosa carruagem rumo à Chácara Botafogo. E mais tarde, o próprio Machado
de Assis, apoiado em sua bengala, andando apressado em direção às palmeiras.
Mas o Largo do Machado não tem esse nome
em homenagem a Machado de Assis como algumas pessoas afirmam. O Largo já era do
Machado, quando Machado de Assis tinha apenas quatro anos de idade, pois o
escritor nasceu em 1839. A versão mais aceita hoje em dia é que no local
existiu um açougue que exibia na sua fachada um machado de madeira. Um nome
pobre, popular, que marcou aquele terreno outrora pantanoso e cheio de
moluscos.
Subindo um pouco mais, entre as ruas do
Catete, Marquês de Abrantes e Conde de Baependi há uma bela estátua de outro
escritor, José de Alencar, um dos expoentes do Romantismo brasileiro. É uma
escultura de Bernardinelli, uma estátua viva, pois José de Alencar foi grande e
mereceu virar estátua. Suas obras não cessam de surpreender sucessivas
gerações.
Machado de Assis proferiu
um comovido e saudoso discurso na cerimônia do lançamento da primeira pedra da
estátua de José de Alencar, um homem que foi acima de tudo seu amigo e seu mestre.
Disse Machado:
“Agora que os anos vão passando sobre o óbito
do escritor, é justo perpetuá-lo pela mão do nosso ilustre estatuário nacional.
Concluindo o livro de Iracema, escreveu Alencar esta palavra
melancólica: ‘A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro, mas não repetia já o
mavioso nome de Iracema. Tudo passa sobre a terra.’ Senhores, a filosofia do
livro não podia ser outra, mas a posteridade é aquela jandaia que não deixa o
coqueiro, e que ao contrário da que emudeceu na novela, repete e repetirá o
nome da linda tabajara e do seu imortal autor. Nem tudo passa sobre a terra.”
“_ É, meu caro Machado, digo-lhe baixinho, a
literatura é mesmo ideal que eleva, honra e consola. As letras são boas amigas
para quem tem a alma enojada e abatida como eu. A arte é a minha liberdade, meu
remédio. É assim que venço as tristezas do coração e continuo amando. Você
entende, não é?”
Há manhãs, quase todas de sol, que
caminho em sentido oposto, orientada pelo abraço do Cristo Redentor. Vou em
direção ao Cosme Velho, ao número dezoito, último endereço de Machado de Assis
e de sua esposa, dona Carolina. Foi de lá que saíram a cama do casal, a
penteadeira, a mesa de jantar, fotos e objetos que hoje estão no Petit Trianon.
Quando passo pelo casarão onde viveu Austregésilo de Athayde e pelo Largo do
Boticário com seus casarões coloniais, azulejos e paralelepípedos, penso que
poderei topar com Machado na primeira esquina. Talvez ele me falasse:
“_
Você veio de tão longe, de um lugar cheio de pássaros, rios, cachoeiras, céus
estrelados, boiadas, campos de vacaria, mas tenho certeza de que lá a natureza
humana é a mesma: perigosa, sempre. Entre, Carolina nos fará um café.”
Aí eu o abraço e deliro:
“_ É verdade, vim lhes fazer uma visita
aqui no Cosme Velho. Queria vê-lo de perto, escrevendo, debruçado sobre seus
papéis avulsos. Queria andar por esses corredores, observar esses retratos. Ah!
Como é linda essa “Dama do Livro”! Sabe, eu o acompanho quando o senhor vai
pela rua do Ouvidor, entre alfaiates, floristas e joalheiros até chegar à
livraria Garnier. Sigo-o pelas repartições, pelos gabinetes, pelos jantares e
reuniões. Conheço sua ironia tranquila, sua piedade por todos, vítimas e algozes.
Presenciei tudo, vi todos os vermes que roeram os cadáveres em suas ressacas de
pessimismo.”
Depois do café oferecido por dona
Carolina, vestida de preto, beijo as mãos de meu amigo e
volto para minha casa, gruta ou caverna de aço. O Cristo agora é uma sombra
projetada em minhas costas.
* Raquel Naveira é graduada em Direito e Letras, cronista, poeta, autora de uma vintena de livros.
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