Os labirintos de Jorge Luís
Borges
Cyro de Mattos
As metáforas de teor
metafísico em Borges soam soberbas e nos deixam perplexos. Não é por acaso que
no poema “Cambridge” afirma: “Somos nossa memória. Somos esse quimérico museu
de formas inconstantes, esse montão de espelhos rotos.” Foi como também viu a nossa
condição na vida o magistral poeta Fernando Pessoa, ao dizer que sonhar era
saber essa ilusão nos reinos espectrais do tempo.
O é, o foi e o será perduram em
Borges por entre inúmeros labirintos. Em Buenos Aires quando segue caminhando,
sentindo nas esquinas o hoje tão lento e o ontem tão breve, nessas esquinas
“sem por que nem quando”. Perscruta
assim, entre a alba e a noite, esta história universal, sem esperar que “o
rigor desse caminho, que teimosamente se bifurca em outro, tenha fim.” Em “El Aleph”,
a história que acompanhamos abre o caminho de um novo tipo de literatura, do
fantástico, do enredo que vai sendo devorado pelos labirintos da imaginação.
Assim posto em cena labiríntica o plano fictício e ao mesmo tempo real de “El
Aleph”, o microcosmos dos alquimistas e dos cabalistas consiste em um dos
pontos do espaço que contém todos os pontos. Aqui, o personagem encontra esse
lugar onde se encontram, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos
de todos os ângulos.
No conto “Pierre Menard,
autor do Quixote”, Borges imagina a história do homem que não queria compor
outro Quixote, não pretendia conceber uma transcrição do original nem se
propunha a copiá-lo. Sua soberba ambição era escrever O Quixote, páginas que
coincidissem, palavra por palavra, linha por linha, com as de Miguel de
Cervantes. Em “O Jardim dos caminhos que se dividem”, ele traça uma extensa
adivinha ou parábola com o tempo, sendo talvez este para a crítica dos contos
mais ricos escritos por Borges. Trata-se de história que espanta e encanta,
pela dualidade em que se encontram a morte e o tempo. Somente no último parágrafo o leitor pode
achar a chave dessa ficção na forma tortuosa em que é executada.
Em “O imortal”, o tema
tratado agora é o da imortalidade dos homens. Borges foca a situação do homem
que sempre procura fugir da morte, após o nascimento. Basta estar vivo para
morrer a cada instante, pensa o homem. Nessa história impressionante, exercida
com linguagem enigmática, percorre-se os labirintos do tempo e do espaço na
tentativa de encontrar a cidade dos imortais, que de tão distante só existe na
imaginação humana. Essa cidade, com sua arquitetura pródiga em simetrias, ainda
que localizada no centro de um deserto desconhecido, enquanto existir ninguém
no mundo poderá ser corajoso e feliz. É
tão horrível que a sua presença confunde o passado e o futuro.
Borges a concebe, como
um amontoado de palavras complexas, um
corpo de tigre ou de touro, onde pulularam
monstruosamente, conjugando-se e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem
(talvez) ser imagens aproximadas.
Há quem afirme que o
escritor só deve escrever sobre o que conhece, viu e viveu. Essa maneira de postular o literário não se
aplica a Jorge Luís Borges, o mais literário dos escritores, o que escreveu e
imaginou o mundo como resultado do que leu e, logo depois que ficou cego em
definitivo, enxergou como poucos seus caminhos metafísicos, sob o rigor do pensamento
e da simetria. Tornou-se por isso mesmo um bruxo impressionante, que inventava
com maestria enredos labirínticos e mitologias
metafísicas, sem ter conhecido fisicamente a paisagem humana e a realidade
objeto da sua escrita. E, assim, lendo e vendo com a alma, imaginando seus
mundos criativos, num estilo sóbrio, passou a ser visto ele próprio como
sinônimo de literatura, aquele que nos lega na poesia, no conto e no ensaio um
universo fantástico, insólito e transcendente.
A literatura esteve sempre na sua alma, soube isso
desde o início, como um destino a cumprir. Aos seis anos comunicou à família
que queria ser escritor. O menino fora muito cedo iniciado na leitura pela mãe,
criatura adorável, que o incentivava a viver intelectualmente no mundo das
letras. Na biblioteca do pai havia descoberto os livros, esse mundo fantástico
das histórias fabulosas onde iria passar a vida toda. Em idade precoce começou
a redigir os primeiros textos, um conto ao modo de Cervantes e um ensaio sobre
mitologia clássica.
Foi no ano em que começou
a Primeira Guerra Mundial que a família de Borges viajou para a Europa. Em
Genebra faz os estudos superiores, na Espanha participa de saraus e publica
poemas em revistas espanholas. Quando regressa a Buenos Aires, encontra uma
cidade diferente, que o encanta e o inspira para escrever os seus textos
labirínticos, de temas metafísicos. Condenado à cegueira, que vinha
gradualmente afetando-o, desde a infância, não viu nela nada de especialmente
patético ou dramático. Submeteu-se a oito operações e, nesse ocaso gradativo,
ficou cego desde os fins de 1950 para a leitura e a escrita. Nessa oportunidade havia escrito o “Poema das
Dádivas” e já era diretor da Biblioteca Nacional. Comentou então da esplêndida
ironia que Deus reservou para ele, concedendo-lhe oitocentos mil livros e a
escuridão.
Condenado à cegueira por herança
paterna, o poeta e prosador que especulou sobre “o livro dos livros”,
observando que não sabe se existe ou se é
sonhado por Deus, lança-nos, em labirintos poéticos arquitetados de luzes e
sombras, histórias fabulosas com galerias de espelhos onde ele explora o tema
da dupla identidade. Jorge Luís Borges é o “fazedor” de outra dimensão da
literatura, enredada no imprevisível, distante do previsível operado pelos
realistas com os elementos da exterioridade circunstante, em que os dados da
objetividade são transpostos para o texto, dando ao ficcionista uma feição de
copiador literário.
É um fazedor de literatura no
melhor sentido, com textos extremamente criativos na direção de contos
maravilhosos, ditados pelo pensamento e com uma imaginação prodigiosa.
Falou-nos de um homem, “que se propõe fazer uma pintura do universo. Depois de
muitos anos, cobriu uma parede nua com imagens de navios, torres, cavalos,
armas e homens, só para descobrir, no momento de sua morte, que desenhara um
retrato de seu próprio rosto.”
Labiríntica, como nesse
personagem, é a natureza da literatura de Jorge Luís Borges, alimentada e
respirada em todos os livros que havia lido. Ele sempre viu a literatura como
forma de conhecimento do mundo, fundamental como o amanhecer. Se não resolve os
problemas cruciais da vida, como certa vez declarou, só com ela e sua linguagem
que salva é que podemos atravessar o nosso lado noturno e alcançar o dia.
Por tantas qualidades excepcionais de um
fino e instigante ficcionista, não se pode deixar de considerar o que, no final
do longo artigo “Uma História do Conto”, dosado com humor, importantes
sinalizações sobre o gênero e seus melhores autores, o escritor Guilhermo
Cabrera Infante acentua a respeito dos contos excepcionais de Jorge Luís
Borges:
Foi Borges quem disse de Quevedo que
não era um escritor, mas uma literatura. Com maior justiça se pode dizer o
mesmo de Borges. Ele sozinho, em sua remota Buenos Aires, que depois dele
sempre está perto, aqui ao lado, virando a página, Borges sozinho fez do conto
toda uma literatura e até mais, uma teoria literária. Não preciso citar nenhum
título, pois vocês conhecem todos. Mas são contos não para ler, e sim para
reler, recordar, memorizar e sempre nos assombrar. Não só com sua cultura e seu
humor, mas também com sua arte narrativa.
Leituras
Sugeridas
FERREIRA,
Serafim. Jorge Luís Borges,
coletânea, Editorial Presença, Lisboa, 1965.
JOSEF,
Bela. História da literatura
hispano-americana, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.
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