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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

 

A crônica octogenária de Cyro de Mattos

Data: 16/02/2023Autor: Anthony Almeida, in revista da crônica RUBEM, Curitiba.

Cyro de Mattos é um cronista experiente e octogenário. Estes dois adjetivos se sobressaem na teia que interliga os textos do seu quinto livro no gênero do velho Braga. Gabriel García Márquez e outras crônicas (Editus, 2021) reúne muitas memórias e reflexões sobre as vivências do autor. Sejam elas passadas ao longo dos últimos anos ou da vida inteira, as reminiscências e o que elas despertam são os ingredientes principais da maior parte do trabalho do velho Mattos, que também é cronista da Revista RUBEM, às quintas-feiras.

As lembranças, contudo, não são os únicos elementos da obra. Cyro também se dedica à escrita da crônica narrativa e claramente ficcional, aquela em que não aparece a típica dúvida de quem lê — será que isso aconteceu mesmo com ele? Com personagens inventadas, tramas, conflitos e desfechos que geram reflexões, os textos desenvolvidos por essa abordagem revelam a experiência não apenas do cronista, mas do escritor. Em seus mais de oitenta anos de vida, Mattos se dedicou a outros gêneros literários e bem sabe que algumas ideias funcionam melhor num ou noutro tipo textual. Ele sabe, portanto, quando esta ou aquela ideia pode ser bem aproveitada numa crônica.

Aqui, o autor reúne 43 textos organizados em três conjuntos: crônicas literárias, crônicas de futebol e crônicas de natureza diversa. Ao contrário do que se pensa, quando se lê o título do primeiro conjunto, todas são crônicas literárias, mesmo as que têm o futebol como tema. É nos textos com a bola no pé, devidamente uniformizado com calção e camisa numerada nas costas, que o cronista bem desenvolve o recurso da crônica narrativa. Uma das mais envolventes da obra é justamente a que narra um “Gol incrível“.

Dentre as crônicas de natureza diversa, mais uma artimanha. Se o que se pensa é que os textos deste bloco tratam sobre aleatoriedades e assuntos avulsos, com a leitura percebemos que é da diversidade da natureza — e das vivências dentro dela — que as crônicas tratam. Nelas, o menino Mattos “sempre achava um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga”. Em “Nos tempos das Marinetes”, há um trecho que daria um belo título de livro: “Cordas de caju. Cordas de caranguejos”.

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O primeiro conjunto, que o autor chamou de crônicas literárias, entretanto, é o principal destaque da obra e explica a escolha do título da coletânea. O bloco, na verdade, agrega textos sobre literatos e quase sempre em tom de réquiem. Todos temos a nossa antologia de mortos e, quanto mais tempo vivemos, mais refletimos sobre as mortes e os mortos que passam por nós. Morre alguém que escrevia, o cronista faz um texto sobre a pessoa e sua relação com ela. É um temário comum entre os cronistas idosos — o próprio Rubem Braga, em As boas coisas da vida, seu último livro, emprega bastante este recurso.

A primeira crônica do livro de Cyro é dedicada à memória de Nelly Novaes Coelho, professora universitária e doutora em Letras. Para ele, a intelectual, da qual foi correspondente por alguns anos, era “soberba como ensaísta” e uma docente que “contribuiu para a formação de inúmeras gerações no campo das letras”. E o uso do “era”, este tempo verbal que nos adianta uma perda, deixa claro que esta é uma crônica-homenagem, coisa que o gênero costuma fazer muito bem.

E é mesmo este bem que Mattos busca trazer no texto, apesar de estar triste e chateado. Ele desabafa sua chateação em saber não apenas da morte de Nelly Coelho, mas em descobrir que “somente depois de um mês de seu falecimento, a imprensa paulista divulgou o fato em notas acanhadas”. É realmente de se lamentar. Mas, deixa estar, Cyro, teu texto bonito está aqui e Nelly estaria orgulhosa de saber do teu carinho por ela.

A memória e a reflexão ganham espaço neste bloco, pois é nele que se tecem digressões sobre autoras e autores, sobre a escrita e sobre a literatura. O título da obra vem justamente de um dos escritos que celebra o escritor Gabriel García Márquez. Na crônica sobre ele, Mattos rememora os encontros que teve com o colombiano. E, além disso, viaja magicamente com o autor de Cem anos de solidão. O encontro de cronista e romancista me remete a outra obra de Márquez: Memória de minhas putas tristes. No romance, o protagonista é um velho cronista que, ao completar noventa anos de idade, escreve para o jornal, em sua crônica dominical, sobre como é andar de bicicleta aos noventa.

 

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Tomara que o nosso cronista octogenário também nos brinde, em suas crônicas de quinta-feira, com reflexões sobre como é ser cronista aos noventa. E, se for em cima de uma bicicleta, melhor ainda.

Anthony Almeida

Professor e escritor

Gabriel García Márquez e outras

 crônicas — Cyro de Mattos
Editus, 2021, 136 p.

 

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