Crônica da Natureza Ferida
Cyro de Mattos
Meu avô dizia que toda árvore devia ser respeitada. A natureza demorava
anos para formar uma árvore, que se expandia por léguas de mata fechada,
enquanto o homem com repetidas machadadas não demorava muitas horas para
derrubá-la. A mata tinha uma enorme cabeleira verde, dormia um sono milenar até
o homem chegar para desfazer o que somente a ela pertencia.
O vento rangia na parte alta da árvore, tremia sua canção antiga nas
folhas, os macacos pulavam nos galhos. Os pássaros cantavam quando a mata
acordava, na festa da natureza a lei para sobreviver era matar ou morrer, mas
com ordem. A mata havia com sua cabeleira milenar, o corpo volumoso onde os
raios do sol não penetravam, de tão fechado. O dia era como a noite nos confins
da terra coberta de árvores. O gavião cedo amanhecia e sobrevoava as partes
mais altas.
Meu avô também dizia que a árvore chamava a nuvem, umas às outras se
uniam numa cortina compacta, fazendo cair a chuva na terra centenária. A água
que caía dos céus fertilizava os campos, amolecia a terra, os frutos
despontavam. Somente o homem, que se dizia civilizado, não quis que a mata
permanecesse nessas bandas de cá com os índios, seus habitantes nativos, e os
bichos que nela moravam, sem fazer mal aos que matam pelo prazer.
Os caçadores, os plantadores de lavoura, os madeireiros, todos eles
desde que apareceram numa sanha incontrolável foram dizimando tudo que
encontrava pela frente na mata fechada. As árvores de lei foram tombando
nos estirões enormes, os troncos serrados, vendidos para que fossem
transformados em esteios, estacas, tábuas, peças para a casa, como ripa,
cumeeira, porta, janela, mesa, cadeira e diversos utensílios domésticos.
Os caçadores não davam trégua aos bichos. Não descansavam enquanto
soubessem que um bicho estivesse vivendo na mata. A caça era moqueada e vendida
na feira do lugarejo e da cidade. Os plantadores queimavam os pedaços de mata
derrubada, o chão reduzido a cinzas servia para implantar as lavouras perenes ou
de pouca duração.
A paisagem que antes era ocupada pelo verde da mata foi dando lugar às
pastagens. Meu avô dizia que a natureza ofendida se vinga cedo ou tarde.
Verdade, de uns anos para cá as chuvas escassearam, a cada verão a estiagem se
torna mais prolongada, a vegetação morre, o capim seca, as lagoas viram lama.
Gado morre de sede e fome, a rês com pele e osso, alquebrada, sem forças para
levantar do chão, os olhos semimortos, o mudo mugido apertado na garganta. Os
urubus alvoroçados bicam a pobre coitada, disputam seus pedaços na festa que
fazem com a comida ainda com uns restos de vida.
Diante do cenário pintado com tintas de luto nos seres e nas coisas, não
esqueço do que meu avô dizia que cedo ou tarde a natureza quando ofendida se
vinga e traz para o algoz ao invés de benesses o funeral das horas.
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