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terça-feira, 25 de julho de 2023

 

 

 

MEU CHÃO

Cyro de Mattos 

                                                           

       

          No aniversário da cidade, como é costume, eventos oficiais e comemorativos  acontecem na programação da comunidade. Alguns deles devem lembrar talvez o sergipano Félix Severino do Amor Divino. O primeiro homem que pisou este solo de Itabuna e, no lugar denominado Marimbeta, hoje bairro da Conceição, ergueu uma casa de taipa, plantando ali uma roça de cereais e cacau. O primeiro homem que recuou a mata hostil e impenetrável. A mata que respirava no dia como se fosse à noite, de tão fechada. Severino do Amor Divino: o desbravador que primeiro conversou com os bichos e cultivou o solo úmido na solidão verde da mata. 

         Falar do início da cidade é tocar em seu parto épico, tempo de solidão feita suor, talhos, atalhos e lágrima. Buscar os vestígios do que a cidade ainda estava longe de ser. Dizer daquele homem e os outros que vieram depois carregados de paixão pela terra, latejando sentimentos na brasa verdejante de ventos gemedores, que acenavam com grandeza nas distâncias. É lembrar a morte na febre. Na picada. Na cangalha. No salto. Na rede. Na capanga. No galope. De véu e grinalda nas léguas tiranas. Tempo de uma flor que deu um fruto com a cor de ouro, brotando a esperança em qualquer parte das léguas promissoras.  Falar do visgo desse fruto, que era forte, do homem que era ainda mais forte.           

          Desbravando a terra, penetrando, construindo arruados, implantando e consolidando a lavra do cacau, o sergipano teve amanhecer fundamental na formação de uma saga feita de cobiça e morte. Pouco mais de cem anos depois parece um sonho, a cidade pulsa num corpo incessante de mais de duzentos e vinte mil habitantes. Pulsando e se impulsionando com o trabalho de sua gente, escalando o azul do céu com edifícios e repercutindo nesse mistério que é o homem engastado no pasto da memória dentro dessa coisa a que se chama vida.    

         Ventos pioneiros percorrem hoje o chão de minhas raízes. Eles acendem em mim essa escrita enorme na terra lavrada com mãos grossas. O machado na mão, o cinturão de cipó, o facão na bainha. Era isso o homem? Tecer na selva de si mesmo e de fora o velho aprendizado da utopia? No rigor do dia, golpes e cortes, domar o tempo com voz frugal? Pelas mãos da aurora dispor a vontade coesa do caos em que pretendia se estender por serras e baixadas? Verifico neste instante essas mãos, pernas e rostos, vermelhos, pretos, brancos, os indígenas recuados, ausculto esses elementos rústicos trabalhados em músculos e tendões, acumulando dores até o último gemido.

        Escuto esses passos de gume, da flecha quebrada na taba banida, bebo água na talha sustentada na base com o encaixe de putumuju. Sento-me no banco de vinhático.  Fera ferida e sonora, vejo aquele homem grapiúna renascendo do verde pelas mãos da aurora como um mato qualquer. Na neblina inclemente, na serra com onça, no açoite do vento. Comia insetos e bebia água de ribeirão. Enxergava no escuro com luz de candeeiro. Contava os dias com a passagem da lua. A folhinha nascia dos talhos feitos na jaqueira. No entardecer, conversava com os sapos na lagoa.  Dormia cedo, embalado nos braços do crepúsculo.         

          Homem e mulher no coito de onça, na cama de vara, mal a noite deitava o manto escuro lá fora.  A mulher também com as mãos no toco. No cabo. No burro. No ventre. Nos porcos. No fogo. No buraco. Nos olhos. Jogava mãos de milho para as galinhas assanhadas de fome no terreiro. Homem desbravador e mulher parideira. Como peixe e água, pássaro e céu, raiz e chão.

         Quando a cidade completa mais um ano de emancipação política, vejo que não sou uma simples pessoa em separado. Tenho o mesmo sangue antigo, o mesmo sangue vermelho em seu curso histórico feito de paixão. Sinto-me bem quando leio os versos de Walt Whitman:

        

 Eu me planto no chão

 para crescer com a relva

 que eu amo

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