O Autor e o Leitor
Cyro de
Mattos
Primeiro
foi o leitor, tempos depois veio o autor, ambos os dois persistem até hoje, o
segundo com mais intensidade, em diversos gêneros, a estrada a essa altura
comprida. Adotado na escola e universidade. Com reconhecimento e distinções
relevantes. Primeiras leituras da
infância foram em almanaque de farmácia e revistas em quadrinhos, ler era então
simples passatempo. Vício entre o trivial e a aventura com os meus heróis
imbatíveis: Homem Submarino, Batman, Mandrake, Fantasma, Capitão Marvel, Tocha
Humana e Durango Kid. A galeria de heróis ampliava-se aos domingos, na matinê
do único cinema da cidade. Na tela do Cine Teatro Itabuna: Tarzan, Falcão do
Deserto, Roy Rogers, Flash Gordon e Robin Hood, dentre outros.
Descobri
Monteiro Lobato graças a seu Zeca Freire, o dono da farmácia. Ele me emprestou dois
livros de Monteiro Lobato, As Caçadas de
Pedrinho e A menina do nariz
arrebitado. Logo percebi que
aquele autor vinha para ficar no coração da garotada, com novas vozes do
mundo, novas cores do sonho.
Ao retornar das aulas do
ginásio na pequena cidade, passava na livraria e papelaria A Agenciadora, que ficava
na rua do comércio. Lá fui encontrando, aos poucos, Júlio Verne, Edgard Allan
Poe e Charles Dickens. A leitura iniciante do menino do interior ia se
enriquecer na Capital, para onde o pai o enviara sob a expectativa de ver mais
tarde o filho se tornar um advogado. Lá costumava visitar a biblioteca pública
do Estado e a do Colégio da Bahia (Central) e, quase todos os dias, passava na
Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile. O estudante buscava nas
bibliotecas, livrarias e “sebos” aquele espaço onírico que o prazer da leitura
proporciona entre descobertas e sustos, carícia e emoção. O vício da leitura
vindo da infância passava a ser um hábito, introduzindo no momento jovial uma
prática social do indivíduo que é impelido a usufruir um objeto tecido com os
sinais visíveis da escrita.
O
ato de ler me faz pensar numa série de observações e sensações, gradações e
variações próprias da natureza humana. Ninguém escreve um livro para ficar no
fundo da gaveta, por mero diletantismo, razão pela qual não se separa os dois
termos da equação livro e leitor. O que pode acontecer é que o autor de livros
não passa de um incompetente usuário da palavra mítica e frustrado inventor de
poemas ou peças de ficção. Por isso mesmo não fica, nasce morto, não conquista
prêmios literários condignos, não possui leitores, seus textos em livro não
recebe a atenção da crítica especializada. Evidente que esse tipo de autor não
conta.
O livro como um objeto tecido de elementos que
buscam alcançar o leitor não é uma abstração teórica para ocupar tão somente a
experiência pessoal do autor numa aventura intelectual. Inventada a história ou
produzido o poema, cujo texto materializa-se no objeto escrito, o autor não
mais exerce domínio sobre a sua ilusão em forma de linguagem, de um código
cifrado no qual entram signos e símbolos. No ato de criar buscou a si e o
outro, o apelo do pensamento não pode ficar indiferente. Há que pulsar em
sentimentos e gestos, armadilhas e descobertas. Porejar nesse pacto íntimo em
que se manifestam situações coincidentes, lembranças, afinidades, recusas,
enfim, um relacionamento forte a circular em muitos casos como paixão, ao mesmo
tempo que oscila em seu vaivém
intervalar entre o amor e o ódio.
O que se espera dos que
escrevem um texto literário? Domínio da língua e facilidade em organizá-la ou
reinventá-la como linguagem de expressão pessoal. Habilidade no uso dos meios
para a criação de uma obra de arte, no caso a obra literária. E, ponto
essencial, capacidade para repercutir no outro o que é dele próprio, pensamento
e emoção. O conteúdo fica por conta do interesse suscitado pela história
inventada ou sentimento de mundo sugerido na ideia fixada através de uma forma
eficaz.
Por uma necessidade
obsessiva de manifestar pulsões vitais profundas, para conhecer a vida e
transmitir o saber inconsciente, dizer o mundo além da superfície, fundá-lo,
transformá-lo, escreve-se nesse gesto de solidão solidária, de sacrifício, mas
que também dá prazer. O parto se faz
sofrido, entre sombras e ânsias, numa profissão de fé e amanhecer fundamental.
O fluxo criativo emerge da tensão no drama, também aflora da escrita
com ternura, graça, ludismo,
ritmo fácil para fazer alegrias, trazer risos, tão necessários.
Ler é colher no texto tudo o que foi escrito.
É gostar, ver e sentir. Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. É se deixar
invadir pelo espetáculo da vida posto de maneira atuante através da palavra
sensível no texto cheio de significados. Há vários tipos desse personagem que
sem a sua participação o livro é coisa morta. Sem circular com o leitor, o
livro fica impedido de ampliar suas potencialidades de ver o mundo.
Para o leitor desavisado,
comum, sem hábito e intimidade com questões estéticas, de linguagem e técnica,
evidente que lhe interessa o livro com um
conteúdo de captura fácil. Este tipo de leitor é também importante, apenas
difere daquele que busca os pontos essenciais da vida postos no texto. Difere apenas no lugar que ocupa no ato da
leitura. Para o outro tipo de leitor, o ato da leitura não é simples passatempo
e prazer. Decorre da própria dinâmica da vida, dado que texto e homem estão
sempre rompendo os limites no prodígio do existir. Para esse tipo de leitor,
agora o ato de leitura é uma maneira de escolher a finitude e a grandeza da
nossa condição humana. Já não há apenas passatempo e prazer, mas percepção do
mundo de forma aguda, modo de revelar-se e impor-se através de uma abertura,
sondagem e direção entre infinitas possibilidades vitais, encontro com os
sentidos ampliadores de sua dimensão existencial. A leitura para ele pertence a
três objetivos básicos do conhecimento: a amplitude, a profundidade e a
utilidade. É aliada do autor numa cumplicidade mútua, o privilégio da fruição é
substituído pelo da recepção em níveis mais largos. A obra literária não é uma
companhia silenciosa, mas acontecimento que repercute a seu lado. Ela abre a
sua alma, fala enquanto ele se fala, lê e se lê. Sentidos imaginados e ideias
compreendidas num pacto íntimo, emoção e pensamento em vários graus de
intensidade, coincidentes ou não.
Um terceiro tipo de
leitor percebe-se naquele que escolhe elementos e ideias para uma operação
crítica do texto. Separa, descobre, aprofunda, revela caminhos e prodígios que
o leitor comum, e até mesmo o consciente de certos sentidos estéticos, não
percebe na obra. Refiro-me aos críticos e aos professores de literatura.
Necessários, em seus estudos e comentários, critérios explicativos e análises
qualitativas, à compreensão do texto literário, através dos elementos que
expressam a vida por meios de palavras polivalentes com sua feição mítica.
A leitura de um texto
literário requer uma radical modificação em nossa maneira de ver e sentir o
mundo. Costuma-se dizer que o gosto pela leitura se adquire pelo hábito de ler.
Lento é o aprendizado que vai capacitando a romper com limitados conceitos de
vida e predispondo a aceitar outras formas de manifestar o pensamento, dizer o
mundo sem ser superficial. Penso que a mais profunda finalidade da arte
literária seja a de colocar o ser humano em permanente reintegração e
participação com a sua humanidade.
O ato de escrever que se
completa com o de ler, enquanto concordância de verdade e beleza, vínculo de
gravidade e jogo, equilibra a vida. Torna o viver suportável, essencial, útil,
solidário e cativante. Digam que o fato político comanda o mundo. O econômico
determina o indivíduo no seu dilema de ser animal faminto e sedento. Dado ser
impossível a apreensão total da vida por qualquer forma de conhecimento, só
restando captar a sua realidade por via indireta, impõe-se que para
representá-la de modo mais abrangente o fato de usar as palavras polivalentes
como meios de expressão. Depreende–se então que só a palavra tem o poder de
construir verdades essenciais com metáforas, símbolos, alegorias e parábolas.
Ou desfazer mentiras com impressões, emoções, sentimentos, que o autor logra
extrair da vida. Nessa perspectiva, das rupturas em aceno como possibilidade do
amor, em diálogo consciente com o mundo, só a palavra no texto literário, como
expressão do eu consciente mais o outro mais o mundo, enriquece e não toma. Com
suas mentiras verdadeiras produzidas na mente do autor, na alquimia do
espírito, ao leitor oferta as mais amplas possibilidades de conhecer o eu e
suas circunstâncias críticas.
Vale a pena repetir quem
não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Pouco sabe dos múltiplos significados que,
sob a superfície dos seres e objetos, desvendam os lados escuros no mistério da
vida.
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