Inocência sem Flor
Conto de Cyro de Mattos
A história do Brasil pode ser considerada
pelo lado do negro com três pês: pão, pano, pancada. Pelo lado do indígena,
entram nessa história feita de assombros nas caçadas humanas três emes: missa,
miçanga, mato.
Capítulos dessa história, impregnada de
usurpação e açoite, dizem que o Brasil Colonial formou uma dívida com o negro e
o indígena que de tão grande nas léguas da desgraça tornou-se impagável.
Em algumas paragens desse Brasil
continental, pisado pelo colonizador ávido, chegou-se ao ponto de terem
desaparecido populações indígenas que viviam em perfeito entendimento com a
natureza, tirando dela apenas o necessário para a sobrevivência.
Às vezes, escuto vozes que
rolam dos longes nesses rastros da desgraça.
Como acreditar? Houve uma mancha que envergonha. A fuga em desespero tingiu a manhã do horror
na taba queimada. Por entre as sombras
do que é perverso e não se apaga, remorso não existiu dos que feriram os
hábitos da inocência irmanados com o verdor da mata, dizimaram a aldeia,
forjaram a chacina, denominando as cenas insanas de façanhas.
Quem saberá quantos ventos na fuga de uma
gente sem rumo entoaram lamentos de uma triste música? Gemidos produzidos nas
entranhas da selva impenetrável? Como se
nada de horror acontecesse num mundo que amanhecia cheio de passaradas, brilhos
e fragrâncias.
Pasmem os céus, até hoje sentimentos que
escorrem em dó e lágrima ressurgem desses rastros que machucam. Tive
conhecimento que a virgindade de meninas indígenas vale pouco, muito pouco na
cidade de São Mateus, que fica nos confins do braço norte do território do
Japará. Lá um homem branco compra a
virgindade de uma menina indígena também com aparelho celular, peça de roupa de
marca e com uma caixa de bombom.
As mães das vítimas pediram à polícia há
um ano para apurar o caso. Nenhum suspeito foi preso até agora.
Doze
meninas já prestaram depoimento. Elas relataram que foram exploradas
sexualmente e indicaram nove homens como os autores do crime. Entre eles, há
comerciantes locais, um ex-vereador, um médico chamado Pedro de Deus, um
farmacêutico, dois sargentos e um açougueiro.
As vítimas vivem na periferia de São
Mateus do Japará, município de baixa renda, que vive das atividades agrícolas,
com base em lavouras primárias, de pouca duração, nas estações temperadas de
sol e chuva. São Mateus do Japará tem
quase cem por cento da população formada por gente indígena. Calcula-se que a
população seja de quinze mil pessoas.
Entre as meninas exploradas, há as que foram
ameaçadas pelos suspeitos. Algumas foram obrigadas a se mudar para casa de
familiares, na esperança de ficarem seguras. O repórter da revista “O Planeta”
ficou interessado pelo caso logo que tomou conhecimento.
Conversou com algumas dessas meninas.
Criou inicial fictícia para cada uma delas, querendo com isso dificultar a
identificação.
B, de 12 anos, conta que vendeu a
virgindade para um vereador. O acerto, afirmou, ocorreu por meio de uma prima
dela, que é também adolescente.
“Ele
me levou para o quarto e tirou minha roupa. Foi a primeira vez, fiquei depois
sem saber o que fazer.”
A menina informou que uma amiga dela
esteve duas vezes com um comerciante.
“Na
primeira vez, ela também foi obrigada. Ele deu um celular.”
Já
L, de 11 anos, disse que ela e outras meninas ganharam chocolates, dinheiro e
roupa de marca em troca da virgindade. Como aconteceu com as outras na primeira
vez, ela foi também obrigada. Recebeu trinta reais e uma caixa de chocolates.
Outra menina, S, de 13 anos, disse que
presenciou encontros de sete homens com meninas de até dez anos.
“Eu vi meninas passando aquela situação,
sem poder fazer nada.” Comentou que
eles sempre dão dinheiro em troca disso (da virgindade).
Ela aceitou falar ao repórter porque já tinha denunciado tudo à polícia
federal. Sabia que o pior podia acontecer, mas não tinha medo de nada.
“O
homem que me usou primeiro falou que se continuasse denunciando eu iria junto
com ele pra cadeia.”
A mãe de S disse que, se ela abrir a boca,
o homem que tirou a virgindade da filha vai mandar matar ela.
Não é difícil imaginar que a menina S
tinha os olhos sumidos no rosto sem brilho, durante a entrevista que deu ao
repórter de “O Planeta”.
Quase não saiu o que disse no final:
“Na primeira vez senti as coxas
doloridas. A boca com um gosto de coisa ruim. Depois fiquei triste”.
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