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quinta-feira, 9 de maio de 2024

 

Uma mãe com mais de cem filhos

 Cyro de Mattos 


Naqueles tempos da conquista e povoamento da terra, antes da emancipação política, a cidade era um ajuntamento de gente vinda da seca do nordeste e de regiões pobres de Minas Gerais. Servia   como burgo de penetração aos forasteiros que chegavam em busca de riqueza. A terra era fértil, o que se plantava tudo dava, corria a fama de que uma lavoura de duração permanente estava sendo implantada naqueles longes, fazia circular notícias promissoras nas estações temperadas de sol e chuva.

A mata estava intacta, era a morada dos indígenas, bichos de voo e carreira. Abrigava o perigo, que ficava de emboscada, a picada do mosquito provocava a peste do impaludismo.  A onça espreitava para o bote preciso, a cobra ficava escondida debaixo das folhas úmidas para de repente desferir a picada letal.

Os lenhadores começaram a derrubar as árvores de lei, fazendo surgir o comércio do extrativismo, a mata, antes hostil e impenetrável, ia recuando com a invasão daqueles homens de mãos calosas, natureza rústica, a barba grossa por fazer. Barracões eram armados nos acampamentos dos derrubadores de árvore, alguns formaram ajuntamentos de gente de vária procedência e se transformaram com o tempo em vilas e, mais para frente, em cidades pequenas. 

Na parte que a mata era recuada, ficando a terra nua, plantava-se então   uma lavoura que produzia um fruto cujas amêndoas valiam como ouro, por isso mesmo ao longo dos anos viria forjar uma saga de cobiça e morte. O cacau foi como ficou conhecido esse fruto, fez surgir com o tempo vilas e cidades, formando uma civilização pujante, que se movimentava com os seus caracteres próprios.

Foi no tempo do apogeu da lavoura cacaueira que ela apareceu na região. O que se dizia e causava pasmo era que aquela mulher baixinha era mãe de mais de cem filhos. Como era isso possível? Minha avó Ana dizia que uma mãe é para cem filhos e cem filhos não são para uma mãe. Minha mãe repetiu isso para mim quando eu já estava ficando rapaz, a sombra do bigode no lábio superior. Pensando hoje no que disseram minha vó e minha mãe, vejo que o amor é o sentimento mais forte que temos, nada se compara ao de uma mãe, que é formado com afeto, conselho, zelo e proteção. Ora, o que dizer então de uma mãe que teve mais de cem e filhos e um número incalculável de netos? E quem seria mesmo a criatura autora dessa proeza de dar à luz a uma prole tão numerosa?

Chamava-se Otaciana, muito cedo pôs os pés na estrada deste mundo de Deus. Mas foi em Itabuna, cidade progressista na região de plantações de cacau, no Sul da Bahia, que iria passar toda a sua vida. Vida bem vivida, como gostava de dizer aquela criatura baixinha, enrugadinha, incansável, de bons préstimos e muito estimada. Na cidade do Sul da Bahia, a professora nascida em Arraial do Galeão,  em Sergipe, iria seguir uma vocação diferente, a de “pegar menino”, numa época em que parto em maternidade não era constante. 

A mulher de família abastada recorria ao médico do hospital de Santa Casa de Misericórdia quando chegava a hora do parto ser realizado. Mas a de origem humilde, na hora decisiva, se valia das mãos de Mãe Otaciana, abençoadas por Nossa Senhora do Bom Parto, como o povo gostava de se referir quando o assunto era pegar menino por aquela criatura com as maneiras de uma pessoa santa.  

De tão querida pelas gentes da cidade, quando se candidatava ao cargo de vereadora, era eleita por votação expressiva, em geral ocupava o primeiro lugar da lista dos vencedores afixada na parede da entrada da Câmara de Vereadores. Não gostava de política, os amigos eram que insistiam e terminavam por convencê-la para se candidatar como vereadora do Partido dos Trabalhadores Brasileiros.

A cidade cometeu omissão imperdoável por não ter erguido em uma de suas praças uma estátua como homenagem aos seus préstimos. No dia que se comemorava a emancipação política da cidade, o padre Pedro, que foi do tempo em que Mãe Otaciana atuava como parteira, rezava na missa a oração dedicada aos que estavam nos céus, os que foram virtuosos aqui na terra, doaram sua vida dedicando-se ao bem do próximo. Mãe Otaciana era o primeiro nome a ser lembrado na relação do sacerdote.  

Por suas mãos, até certo ponto divinas, nasceram homens e mulheres que construíram o progresso da cidade. Pelas mãos pacientes de uma criatura que tinha olhos como duas contas azuis, passos miúdos, Deus anunciou o milagre da vida.  Mostrou a flor gerada com ansiedade e, no desenlace feliz, sendo levada para o calor do seio.

Um dia, com aqueles olhinhos vivos, que pareciam sorridentes quando ela falava, contou-me como ocorreu o primeiro parto que fez. Fora chamada à noite, o tempo estava escuro e chuvoso. Bem moça, coração confiante, chegava à casa da parturiente, que passava mal. Terminados aqueles minutos sempre lentos, de apreensão para os de casa, escutou-se dentro da noite o choro da criança. O pai limpou a turvação ardida nos olhos com a manga da camisa. Ela observou: “Foi esse calanguinho aí que deu todo esse trabalho!” A partir daquele parto, a professora que veio do sertão deixaria de ensinar, mãos cuidadosas jamais deixariam de “pegar menino” enquanto ela vivesse.

Da última vez que encontrei Mãe Otaciana, saindo de sua residência modesta, perguntei-lhe se começaria tudo de novo no seu ofício de parteira. Ela, sem hesitar um minuto, irradiando candidez no rosto vívido, alegria numa voz baixinha quase não se ouvindo, respondeu que sim. Era muito apegada com Deus. Nunca teve problemas na arte de “pegar menino”. Sempre que um parto era difícil recorria a um médico, que dava todo o apoio e ajuda, acrescentava que essa mão amiga a fazia feliz. Encerrou a conversa com uma observação que, em seu significado puro e verdadeiro, muita gente na cidade conhecia: “Na vida trabalhei muito, meu filho”.

Forte, abnegada, sábia. Com aquele saber simples e profundo recolhido das águas do tempo. Só consigo vê-la nesse instante como uma criatura aparentemente frágil, mãos pequenas, cabeça alva, rumo à casa da parturiente. Encurvadinha, acalentando luas, recolhendo a vida, que, enrolada nas lãs do mistério, chegava dos longes para dar nesse beijo esperado o primeiro vagido.

Revejo-a com os olhinhos sorridentes, rosto lúcido, aparando o susto esplêndido dentro da noite caprichosa. Noite túmida que, adormecida no seio, ainda nem sonha.

No Dia das Mães sempre acendo uma vela nos pés de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, rogo no oratório pelo bem estar da alma dessa mãe que me pegou no parto e com mais uma vitória sobre a indesejada das gentes me trouxe ao mundo. Agradeço minha chegada aqui graças às suas mãos bondosas, que me pegaram na hora certa quando acordei para a vida, aonde cheguei para viver uma experiência, adquirir conhecimento dos dias entre o alegre e o triste. 

Aconteceu que chegou a pegar até quatro meninos numa só vez. Aquela pobre mãe tinha contrações seguidas, encontrando resistência em cada menino que não queria nascer. Nessa hora de esforço, a parturiente encontrava coragem para prosseguir nas contrações com a presença dela.  A mãe que teve quatro meninos era lavadeira, vivia de lavar roupa de ganho, o marido tinha um rosto amarelecido de quem pouco se alimentava nas refeições de cada dia. Era carvoeiro. Moravam no bairro do ribeirão Lava-pés, o mais pobre da cidade.

A mulher, uma negra magra, não tinha recursos para fazer o enxoval decente para um menino quanto mais para quatro. A cidade ficou comovida com a campanha que Mãe Otaciana estava realizando  com a finalidade de arrecadar dinheiro que desse para comprar os panos de enxoval para quatro rebentos.

 Era sempre vista na feira, aos sábados. Cedo recolhia com a pequena cesta donativos para a mulher pobre que ia parir quatro meninos. De porta em porta, na semana, pedia ajuda para fazer o enxoval dos quatro meninos. 

Dormia pouco, o tempo disponível era dedicado àquela causa, para lá das mais dignas, inspirada no bem que ia ser dado a uma parturiente pobre em momento difícil. Dor é vida, sofremos porque estamos neste mundo com suas surpresas nem sempre esperadas, muita gente pensava nisso quando comentava as dificuldades que aquela mulher pobre estava enfrentando para parir e teria para criar quatro meninos. A mulher de estatura pequena, corpo frágil, gestos humildes, não desanimava, não se sabe de onde tirava força para prosseguir na campanha de angariar donativos e doar à parturiente pobre. Ensinava por entre os gestos difíceis da vida que essa se torna viável quando habitada com amor.

Há milênios que as religiões estão tentando mostrar ao ser humano que só o amor constrói. Braço ao abraço a rota fica mais fácil. Há milênios nós os humanos estamos construindo a história de nossa condição com intolerâncias, violência, egoísmo. Com uma escrita às avessas, desviada da ternura.  O que sabe hoje o nosso pobre coração humano de Deus? Do enigma da dor no final, do amor, nosso sentimento mais forte?

Essa lição fácil, pegar menino de mulheres tristes, aflitas no calendário das privações, acompanhadas de dor, sem ter renda para fazer um enxoval decente para o filho, daquela vez foram quatro, ela  demonstrava com prazer que a vida vale a pena, pois Deus existe. Podemos senti-lo na flor do coração. Basta amar o outro, fazendo o bem sem saber a quem.  A flor do coração sente-se em outros que ao nosso se juntam.

        Ensinava que a vida tem sentido com excesso de pobreza. Forçava assim que eu me fizesse a pergunta: Como pode uma mulher frágil ser mãe de mais de cem filhos sob o vento áspero do difícil gesto de viver? Plantar a alegria, a resignação de dezenas de vozes sem leveza nos dias de cada estação? Na sua humildade, mostrava que a morada em nossa mãe terra poder saudável, desde que o tempo aconteça com a solidariedade de todas as mãos numa só mesa.  

Em linguagem simples mostrava que todos nós somos missionários. Consistia a prática em doar-se ao outro, semear o amor entre os excluídos de uma vida digna, muitos deles sem saber a razão da fome e sede que tinham na vida diária, da nudez que faz penar quando se enfrenta o vento gelado do inverno.

 

 

 

 

 

 

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