Uma mãe com mais de cem filhos
Naqueles tempos da conquista e povoamento da terra,
antes da emancipação política, a cidade era um ajuntamento de gente vinda da
seca do nordeste e de regiões pobres de Minas Gerais. Servia como burgo de penetração aos forasteiros que
chegavam em busca de riqueza. A terra era fértil, o que se plantava tudo dava,
corria a fama de que uma lavoura de duração permanente estava sendo implantada
naqueles longes, fazia circular notícias promissoras nas estações temperadas de
sol e chuva.
A mata estava intacta, era a morada dos indígenas,
bichos de voo e carreira. Abrigava o perigo, que ficava de emboscada, a picada
do mosquito provocava a peste do impaludismo.
A onça espreitava para o bote preciso, a cobra ficava escondida debaixo
das folhas úmidas para de repente desferir a picada letal.
Os lenhadores começaram a derrubar as árvores de
lei, fazendo surgir o comércio do extrativismo, a mata, antes hostil e
impenetrável, ia recuando com a invasão daqueles homens de mãos calosas,
natureza rústica, a barba grossa por fazer. Barracões eram armados nos
acampamentos dos derrubadores de árvore, alguns formaram ajuntamentos de gente
de vária procedência e se transformaram com o tempo em vilas e, mais para
frente, em cidades pequenas.
Na parte que a mata era recuada, ficando a terra
nua, plantava-se então uma lavoura que
produzia um fruto cujas amêndoas valiam como ouro, por isso mesmo ao longo dos
anos viria forjar uma saga de cobiça e morte. O cacau foi como ficou conhecido
esse fruto, fez surgir com o tempo vilas e cidades, formando uma civilização
pujante, que se movimentava com os seus caracteres próprios.
Foi no tempo do apogeu da lavoura cacaueira que ela
apareceu na região. O que se dizia e causava pasmo era que aquela mulher
baixinha era mãe de mais de cem filhos. Como era isso possível? Minha avó Ana
dizia que uma mãe é para cem filhos e cem filhos não são para uma mãe. Minha
mãe repetiu isso para mim quando eu já estava ficando rapaz, a sombra do bigode
no lábio superior. Pensando hoje no que disseram minha vó e minha mãe, vejo que
o amor é o sentimento mais forte que temos, nada se compara ao de uma mãe, que
é formado com afeto, conselho, zelo e proteção. Ora, o que dizer então de uma
mãe que teve mais de cem e filhos e um número incalculável de netos? E quem
seria mesmo a criatura autora dessa proeza de dar à luz a uma prole tão
numerosa?
Chamava-se Otaciana, muito cedo pôs os pés na
estrada deste mundo de Deus. Mas foi em Itabuna, cidade progressista na região
de plantações de cacau, no Sul da Bahia, que iria passar toda a sua vida. Vida
bem vivida, como gostava de dizer aquela criatura baixinha, enrugadinha,
incansável, de bons préstimos e muito estimada. Na cidade do Sul da Bahia, a
professora nascida em Arraial do Galeão, em Sergipe, iria seguir uma vocação diferente,
a de “pegar menino”, numa época em que parto em maternidade não era
constante.
A mulher de família abastada recorria ao médico do
hospital de Santa Casa de Misericórdia quando chegava a hora do parto ser
realizado. Mas a de origem humilde, na hora decisiva, se valia das mãos de Mãe Otaciana,
abençoadas por Nossa Senhora do Bom Parto, como o povo gostava de se referir
quando o assunto era pegar menino por aquela criatura com as maneiras de uma pessoa
santa.
De tão querida pelas gentes da cidade, quando se
candidatava ao cargo de vereadora, era eleita por votação expressiva, em geral
ocupava o primeiro lugar da lista dos vencedores afixada na parede da entrada
da Câmara de Vereadores. Não gostava de política, os amigos eram que insistiam
e terminavam por convencê-la para se candidatar como vereadora do Partido dos
Trabalhadores Brasileiros.
A cidade cometeu omissão imperdoável por não ter
erguido em uma de suas praças uma estátua como homenagem aos seus préstimos. No
dia que se comemorava a emancipação política da cidade, o padre Pedro, que foi
do tempo em que Mãe Otaciana atuava como parteira, rezava na missa a oração
dedicada aos que estavam nos céus, os que foram virtuosos aqui na terra, doaram
sua vida dedicando-se ao bem do próximo. Mãe Otaciana era o primeiro nome a ser
lembrado na relação do sacerdote.
Por suas mãos, até certo ponto divinas, nasceram
homens e mulheres que construíram o progresso da cidade. Pelas mãos pacientes
de uma criatura que tinha olhos como duas contas azuis, passos miúdos, Deus
anunciou o milagre da vida. Mostrou a
flor gerada com ansiedade e, no desenlace feliz, sendo levada para o calor do
seio.
Um dia, com aqueles olhinhos vivos, que pareciam
sorridentes quando ela falava, contou-me como ocorreu o primeiro parto que fez.
Fora chamada à noite, o tempo estava escuro e chuvoso. Bem moça, coração
confiante, chegava à casa da parturiente, que passava mal. Terminados aqueles
minutos sempre lentos, de apreensão para os de casa, escutou-se dentro da noite
o choro da criança. O pai limpou a turvação ardida nos olhos com a manga da
camisa. Ela observou: “Foi esse calanguinho aí que deu todo esse trabalho!” A
partir daquele parto, a professora que veio do sertão deixaria de ensinar, mãos
cuidadosas jamais deixariam de “pegar menino” enquanto ela vivesse.
Da última vez que encontrei Mãe Otaciana, saindo de
sua residência modesta, perguntei-lhe se começaria tudo de novo no seu ofício
de parteira. Ela, sem hesitar um minuto, irradiando candidez no rosto vívido, alegria
numa voz baixinha quase não se ouvindo, respondeu que sim. Era muito apegada
com Deus. Nunca teve problemas na arte de “pegar menino”. Sempre que um parto
era difícil recorria a um médico, que dava todo o apoio e ajuda, acrescentava
que essa mão amiga a fazia feliz. Encerrou a conversa com uma observação que,
em seu significado puro e verdadeiro, muita gente na cidade conhecia: “Na vida
trabalhei muito, meu filho”.
Forte, abnegada, sábia. Com aquele saber simples e
profundo recolhido das águas do tempo. Só consigo vê-la nesse instante como uma
criatura aparentemente frágil, mãos pequenas, cabeça alva, rumo à casa da
parturiente. Encurvadinha, acalentando luas, recolhendo a vida, que, enrolada
nas lãs do mistério, chegava dos longes para dar nesse beijo esperado o
primeiro vagido.
Revejo-a com os olhinhos sorridentes, rosto lúcido,
aparando o susto esplêndido dentro da noite caprichosa. Noite túmida que,
adormecida no seio, ainda nem sonha.
No Dia das Mães sempre acendo uma vela nos pés de
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, rogo no oratório pelo bem estar da alma
dessa mãe que me pegou no parto e com mais uma vitória sobre a indesejada das
gentes me trouxe ao mundo. Agradeço minha chegada aqui graças às suas mãos
bondosas, que me pegaram na hora certa quando acordei para a vida, aonde cheguei
para viver uma experiência, adquirir conhecimento dos dias entre o alegre e o
triste.
Aconteceu que chegou a pegar até quatro meninos
numa só vez. Aquela pobre mãe tinha contrações seguidas, encontrando
resistência em cada menino que não queria nascer. Nessa hora de esforço, a
parturiente encontrava coragem para prosseguir nas contrações com a presença
dela. A mãe que teve quatro meninos era
lavadeira, vivia de lavar roupa de ganho, o marido tinha um rosto amarelecido
de quem pouco se alimentava nas refeições de cada dia. Era carvoeiro. Moravam
no bairro do ribeirão Lava-pés, o mais pobre da cidade.
A mulher, uma negra magra, não tinha recursos para
fazer o enxoval decente para um menino quanto mais para quatro. A cidade ficou
comovida com a campanha que Mãe Otaciana estava realizando com a
finalidade de arrecadar dinheiro que desse para comprar os panos de enxoval
para quatro rebentos.
Era sempre vista na feira, aos sábados. Cedo
recolhia com a pequena cesta donativos para a mulher pobre que ia parir quatro
meninos. De porta em porta, na semana, pedia ajuda para fazer o enxoval dos
quatro meninos.
Dormia pouco, o tempo disponível era dedicado
àquela causa, para lá das mais dignas, inspirada no bem que ia ser dado a uma
parturiente pobre em momento difícil. Dor é vida, sofremos porque estamos neste
mundo com suas surpresas nem sempre esperadas, muita gente pensava nisso quando
comentava as dificuldades que aquela mulher pobre estava enfrentando para parir
e teria para criar quatro meninos. A mulher de estatura pequena, corpo frágil,
gestos humildes, não desanimava, não se sabe de onde tirava força para
prosseguir na campanha de angariar donativos e doar à parturiente pobre.
Ensinava por entre os gestos difíceis da vida que essa se torna viável quando
habitada com amor.
Há milênios que as religiões estão tentando mostrar
ao ser humano que só o amor constrói. Braço ao abraço a rota fica mais fácil.
Há milênios nós os humanos estamos construindo a história de nossa condição com
intolerâncias, violência, egoísmo. Com uma escrita às avessas, desviada da
ternura. O que sabe hoje o nosso pobre
coração humano de Deus? Do enigma da dor no final, do amor, nosso sentimento
mais forte?
Essa lição fácil, pegar menino de mulheres tristes,
aflitas no calendário das privações, acompanhadas de dor, sem ter renda para
fazer um enxoval decente para o filho, daquela vez foram quatro, ela demonstrava com prazer que a vida vale a
pena, pois Deus existe. Podemos senti-lo na flor do coração. Basta amar o
outro, fazendo o bem sem saber a quem. A
flor do coração sente-se em outros que ao nosso se juntam.
Ensinava que a vida tem sentido com excesso de pobreza. Forçava assim que
eu me fizesse a pergunta: Como pode uma mulher frágil ser mãe de mais de cem
filhos sob o vento áspero do difícil gesto de viver? Plantar a alegria, a
resignação de dezenas de vozes sem leveza nos dias de cada estação? Na sua
humildade, mostrava que a morada em nossa mãe terra poder saudável, desde que o
tempo aconteça com a solidariedade de todas as mãos numa só mesa.
Em linguagem simples mostrava que todos nós somos missionários.
Consistia a prática em doar-se ao outro, semear o amor entre os excluídos de
uma vida digna, muitos deles sem saber a razão da fome e sede que tinham na
vida diária, da nudez que faz penar quando se enfrenta o vento gelado do
inverno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário