“Perdoar, sim; esquecer, jamais”
Florisvaldo Mattos
Precisamente hoje, transcorrem os 77 anos do bombardeio da cidade de Guernica, situada ao norte da Espanha, por caças da Legião Condor, a mando de Adolf Hitler, prenunciando a sangueira da segunda guerra mundial que iria ser por ele deflagrada pouco mais de dois anos depois (1939), com a invasão da Polônia.
Quase como eco fatal de um verso de Lorca (“Eram cinco da tarde em ponto” – “A captura e a morte”, em Pranto por Ignácio Sánchez Mejías, 1935), a tragédia de Guernica começou exatamente às 16:45 horas de uma segunda-feira, em 27 de abril de 1937, dia de feira na cidade, a cujas ruas estreitas naturalmente afluíam pessoas comuns, a maioria camponeses dos vales vizinhos com seus produtos para venda.
Por duas vezes, estático e hipnotizado, prostrei-me diante de Guernica, a célebre pintura mural do catalão Pablo Picasso, que retrata a densidade trágica do episódio. A primeira, em 1978, em Nova York , a obra então dominando amplo salão à entrada do MoMA (Museu de Arte Moderna), onde permaneceu de 1942 a 1991, por expressa e cautelosa vontade do pintor; a segunda, em 1994, já em Madri, no museu Casa Del Arte Reina Sophia, para onde a obra se transferira depois de breve período num anexo do Museu do Prado, agora ocupando quase inteiramente vasta parede cercada de vidros blindados e severo aparato de segurança.
Em ambas as ocasiões, entre perplexo e tenso, pude sentir o halo de admiração, reverência e pasmo que envolvia o semblante de cada um dos que, mirando-a, se dispunham em longas filas, reproduzindo-se talvez, num e noutro momento, sensação semelhante à de que se tomaram os visitantes da grande exposição internacional de Paris, ao se deparar com a obra, medindo 3,51m x 7,52m, que ornava a entrada do pavilhão da Espanha, ainda em 1937.
Uns, segundo relatos da época, sem conter as lágrimas, sacudidos pelos ecos da ignominiosa luta fratricida que se travava na Espanha; outros, esses jovens pintores, impactados com o desfile da violência por todo o painel, e talvez pela premonição do futuro sombrio que viria logo a seguir, em 1939, a segunda grande guerra mundial. Deixava ali Guernica o modesto e lúgubre atelier de Pablo Picasso, na RuedesGrands-Agustins, para entrar na história da humanidade.
Por isso mesmo, o episódio trágico de Guernica e a monumental obra de Picasso, que se tornaria um ícone na história da arte e da luta ideológica do século XX, comportam duas narrativas, nas quais a guerra sobressai como palco de carnificina e símbolo de morte e horror: a do bombardeio covarde de uma pacata cidade basca no norte da Espanha, em frente ao golfo de Biscaia, pelos aviões da famosa Legião Condor, a mando de Adolf Hitler, e a da célebre obra pintada por um artista extraordinário, na qual, remontando à concepção de Homero, na Ilíada, se reafirma que a beleza emerge do sofrimento e do desastre.
Hoje, ante o espetáculo planetário da dissolução de valores, com o terror e a guerra instalados, atomizados e quase familiarizados no cotidiano de cidades, países e povos, com mortes diárias, mutilações, humilhações e dor generalizada, pode-se ter uma ideia do que significaram a tragédia da pequena cidade basca e a sua memória pelas mãos de um gênio, nesta obra encomendada pelo governo, quando a República da Espanha já definhava.
Anos depois de ter estado no MoMa, e concomitante com a visita ao museu Reina Sophia, redigi um poema à memória de Guernica, que integra o conjunto de ACaligrafia do soluço (1996), adiante reproduzido.
(Em tempo: o texto acima é adaptação e resumo do publicado em “A Tarde Cultural”, em 2007, pelos 70 anos da tragédia, e o título foi retirado de um registro jornalístico. Visitando Guernica em 2000, o americano Herbert Mitgang, em artigo para o The New York Times, anotava, sintetizando observações e contatos que lá fizera, o sentimento que sobrevive naqueles corações resignados: “Perdoar, sim; esquecer, jamais”).
REVISITANDO GUERNICA
(Via Picasso; Madri, 1994)
Florisvaldo Mattos
Onde álacres campinas de recreio
Abriam-se a canto e alarido escolar;
Onde antes havia o tempo sem abismos,
Coruscantes ruas, comércio lucrativo,
Familiar convívio de pacatos rostos,
Ah, tudo desapareceu na hora agra:
Algo se transmudou em chão rugoso,
A seara insone de insaciadas fomes.
Foram mil seiscentos e cinquenta
Mortos; oitocentos e oitenta e nove
Feridos e aleijados. Em Guernica,
As platibandas antes imponentes
Testemunharam o furor do sangue;
Enquanto avança o vento assoviando,
Fendas no chão de crenças, sonhos
Súbito de pedra viram coágulos.
Aquartelados nos oitões da sombra,
De alumínio e aço centuriões desatam
Os arsenais de mortas dinastias –
Metálico tropel, inferno a vômitos.
Meteoro cravado a ferro e fogo
Sobre chaga ainda incólume sem idade,
Guernica: Troia em terras de Numância;
Canudos no caminho de My-lai.
Como que pendentes das estatísticas
E dos noticiosos radiofônicos,
Milhares de pássaros em pânico,
Mulheres e homens por aqui passaram,
Sem olhos e mãos aos céus clamando.
Ao marulho de pés acorrentados,
Marcham por vales e nevados montes.
Marcham, e marcham para a eternidade.
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