Já
vão longe aqueles idos. Tento tirar da memória alguns momentos daquele mundo
que rolava com a infância na bola. Da fumaça do tempo procuro encontrar o
menino que jogava pelada nos campinhos improvisados dos terrenos baldios,
espalhados pela cidade pequena, com alguns bairros e poucas ruas calçadas. Às
vezes o campinho era improvisado em algum fundo de quintal ou pastagem de uma
roça perto do centro da cidade. O jogo era disputado debaixo de chuva ou sol
escaldante.
Havia
o Campinho do Fole no outro lado do rio. Ali eram jogadas aos domingos, pela
manhã, as partidas mais importantes. O time de garotos da rua de cima contra o
da rua de baixo. No vaivém do jogo não faltavam empurrões, bate-bocas,
xingamentos e algumas brigas intensas. Terminando o jogo, o banho na correnteza
de águas límpidas serenava os ânimos. Uma amizade feita de relações naturais
logo se refazia com mergulhos e saltos a partir dos barrancos íngremes.
O
pai levava-me para ver os jogos dos times amadores da cidade no Campo da
Desportiva. No início cercado com folhas de zinco, depois murado, o Campo da
Desportiva era uma festa aos domingos. As folhas de zinco que cobriam a arquibancada
zuniam forte quando as rajadas de vento penetravam entre suas frestas. Dava
arrepios, parecia que algumas folhas de zinco na cobertura da arquibancada
podiam se soltar a qualquer momento e causar danos entre os torcedores.
Lá,
naquele campo de grama maltratada, o menino viu lances para não esquecer. Os
dribles do meia-esquerda Macaquinho faziam os torcedores sorrir, a bola ficava
grudada no seu pé, ninguém conseguia tomar dele. Delicado era um maestro, como sabia tocar a
bola com sutileza para o companheiro. Carrapeta tinha uma visão de jogo que só
o craque possui. Distribuía o jogo com a cabeça erguida, lançava a bola para o
atacante fazer o gol, sem maior esforço.
Mais adiante, na época da seleção amadora de ouro, conheci o
centroavante Zé Reis, um artilheiro que se o marcador desse uma bobeira sabia
marcar sua presença. Não era jogador técnico, mas longe de ser cabeça de bagre.
Cumpria bem a sua missão de fazer gol. Jogou no Fluminense local, na seleção de
Itabuna e no Leônico de Salvador, onde foi artilheiro do campeonato por várias
temporadas.
E
a pior derrota? Em 1950, Brasil contra Uruguai., final do campeonato mundial,
no Rio. O Brasil jogava pelo empate. Um gol fazia balançar o estádio com 200
mil pessoas. Foi de Friaça no início do segundo tempo, lenços acenavam para os
valentes atletas uruguaios. “É campeão! É campeão!” Todos os brasileiros
cantavam o grito de glória numa só corrente de vasto amor. Veio o gol de empate dos uruguaios, Schiafino
o autor da proeza. Um calafrio penetrava ossos e nervos do Maracanã com a
lotação máxima. O inexorável iria acontecer aos 34 minutos. O ponteiro Gighia
chutava a bola e a grama. Ninguém acreditava no que se estava vendo, a bola entrando entre a trave e o goleiro
Barbosa. Lenços já não acenavam. Aquela coisa que só infundia medo,
estupidamente sem tamanho, percorria todo o estádio. Dominava o ar de milhões
de brasileiro. Ninguém podia reverter o capricho dos deuses. Contava o locutor
que, encerrado o jogo, a procissão de mortos saía do Maracanã, o país em
chuteiras, que pensava e amava pelos pés naquele dia, em caos desencantava-se.
Na
cidade pequena, eu via as ruas desertas, bares fechados, a praça em silêncio. O
padre não rezou a missa das oito da noite. Daí para frente o canto amargo da
memória iria lamber as chagas daquele menino que ficou frustrado no cais da
vida, esquecido de si, preso ao nada.
Ainda
tentei reagir àquela frustração sem igual com os amigos de minha rua. Soube na semana que, em cada domingo, o Cine
Itabuna iria projetar na tela as partidas do Brasil no Campeonato Mundial de
Futebol. Meus olhos ávidos não perderiam um lance em cada partida da nossa
seleção. Hipnotizados acompanhariam cada jogada, drible, chute contra a meta adversária.
Vibraria com a garotada em cada gol que o Brasil marcasse. Contra a Suécia e a
Espanha tinha sido demais.
O
plano que armei com os outros meninos para driblar as sombras de um pesadelo
que se alojava em meu pequeno coração era simples. Não assistiríamos mesmo, na
tela do Cine Itabuna, a derrota do Brasil na final contra o Uruguai. Em algazarra sairíamos pela rua gritando “É
campeão! O Brasil é campeão!”, batendo com pau nas latas vazias.
Eu
liderava o desfile, ia na frente da turma, segurava o cartaz com o letreiro grande:
BRASIL
CAMPEÃO MUNDIAL DE FUTEBOL 1950.
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