Cyro de Mattos no
que houve
Henrique Fendrich*
É preciso ter vivido muitos anos para saber que a
recordação de certos fatos e coisas nada mais é do que saudade da vida que
passa com os dias, semanas e meses. As pessoas, bichos, casas e ruas fogem como
nuvens, ninguém pode retê-los. Infelizmente. Nesse tempo de mim procuro juntar
fragmentos para me suavizar um pouco com essa saudade permeada de fatos, seres
e coisas. De longe retorno agora no que houve para latejar sentimentos para mais
eu em mim. (Cyro de
Mattos)
A introdução da crônica “Esse tempo de mim” bem
pode servir como argumento para as outras que compõem “Um Grapiúna em
Frankfurt” (Dobra Literatura, 2013), coletânea de Cyro de Mattos,
também cronista
da RUBEM. Suas
crônicas são, justamente, fragmentos em que o escritor, impossibilitado de
reter o tempo, suaviza-se através das recordações de histórias e pessoas que
lhe marcaram a vida.
Assim é que o cronista revive episódios de uma
infância no sul da Bahia, onde os desbravadores e, por extensão, os seus
descendentes são chamados de grapiúna (o nome, de origem indígena, pode se
referir a uma pequena ave preta que vive às margens do rio ou a um riacho
preto, encontrado nas fazendas de cacau da região).
Nesta infância, sem jogos eletrônicos e com ruas
pouco movimentadas, quando o trem ainda fazia parte da vida da cidade, Cyro de
Mattos se lembra de antigos Natais, dos doces de sua avó Ana, do seu
encantamento por Monteiro Lobato, de sua prima Gringa, de um singelo episódio
de dor de dente. Mais crescido, o escritor se lembra da Boate ID e, através de
uma fotografia amarelecida, recorda-se dos colegas da faculdade de Direito.
Estas são memórias mais pessoais, mas o livro
também está recheado de pequenas biografias que contam episódios com
personagens locais – às vezes célebres, como o amigo Jorge Amado, às vezes
tipos locais, como o doido manso de apelido Jipe. Cyro de Mattos ressalta
virtudes e aprendizados que encontrou através dessas convivências, através
dessas amizades – e ele tem boas amizades que vêm desde a juventude e outras
que nasceram graças ao milagre operado pela literatura.
Nem sempre, é claro, o cronista tem a felicidade de
encontrar tipos tão admiráveis. Exemplo disso são os personagens de “Quatro
mosqueteiros do mal”, todos tocando forte a clave da vaidade, conforme a
metáfora usada pelo escritor em um dos textos mais significativos do livro, a
crônica “A negação do outro”.
Embora reconheça que não é um político militante,
Cyro de Mattos se diz alguém que teima em dar palavras aos sonhos, como faz em
“Utopia dos Palmares”. É também com indignação que comenta a morte do rio de
sua cidade enquanto os vereadores não mostram a menor preocupação com o
dinheiro público. Em “A cereja do bolo”, faz uma importante defesa da cultura,
normalmente vista com miopia pela classe política.
E, não fosse a natureza, é possível que Cyro de
Mattos desanimasse de tanto desgosto que encontra o mundo. Mas ele ainda ouve o
clarim da garrincha anunciando que a noite chegou ao fim, admira o canto
mavioso do sabiá, pergunta-se o que seria de nós se não existissem os
passarinhos soltos no embalo festivo da natureza. São pequenos seres que, certamente,
também latejam sentimentos para mais Cyro em Cyro.
*Henrique
Fendrich é jornalista, editor da revista de crônicas online RUBEM, em homenagem
a Rubem Braga
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