Existem livros que todos louvam mas ninguém (exceto
uns poucos especialistas e estudiosos) lê. Refiro-me ao Ulisses do
Joyce e ao Grande Sertão, Veredas do Rosa. Se você lê o
primeiro parágrafo já desiste. Ei-lo:
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de
homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do
córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha
mocidade.
Meu pai, que tinha uma biblioteca umas três vezes
maior que a minha (e olha que a minha já é grandinha) e que até no hospital
onde veio a falecer estava lendo um livro (um tijolão, uma história de Berlim,
em inglês), disse que tentou ler o Ulisses várias vezes — no
original, em sua língua natal, o alemão, na tradução brasileira do Houaiss —
mas nunca conseguiu. Se ele não conseguiu, quem sou eu para sequer tentar?
Outro autor "difícil" é o
Proust. Ou bem você adora, ou bem você odeia. O Nava adorava.
Eu adoro o Nava. Portanto, por uma lógica aristotélica, eu deveria adorar. Nos
meus vinte anos, quando eu devorava toda sorte de literatura (o Eça, o Machado)
um professor de economia da Fundação Getúlio Vargas que conheci (depois foi
parar em Londres) disse que para ler Proust você tinha que ter trinta anos.
Assim, esperei. Cheguei aos trinta, quarenta, cinquenta, sessenta.
Em viagem recente a Paris, saboreei umas madalenas.
No Parc de Bagatelle minha mulher observou que Swann (no filme) ia lá. Foi o
suficiente para que eu decidisse que chegou a hora
de ler Proust.
Escolhi a clássica tradução do Quintana (a do Py
será melhor?) O primeiro volume ainda consegui traçar. Criei até um verbete
correspondente na Wikipedia, traduzido do verbete francês. Você pode ir lá ver.
Do segundo volume, sobre as “raparigas em flor”
(que o Py moderniza para "moças"), consegui transpor três quartos.
Pico Ayer compara a leitura de Proust a uma "revelação" budista.
Flerto com o budismo desde os anos noventa do século passado mas não consegui
ver o que tem o cu (o Proust) a ver com as calças (a revelação).
Fala sério, depois de esbarrar com uma passagem
como a que se segue dá para continuar lendo o livro?
Sem dúvida, naqueles anos ainda tão pouco
afastados, não era à visão do grupo, como na véspera em seu primeiro
aparecimento ante mim, mas ao próprio grupo que faltava nitidez. Então, aquelas
crianças demasiado pequenas estavam nesse grau elementar de formação em que a
personalidade ainda não apôs o seu selo em cada rosto. Como esses organismos
primitivos em que o indivíduo praticamente não existe por si mesmo e é antes
constituído pelo polipeiro que pelos pólipos que o compõem, permaneciam elas
comprimidas umas contra as outras. Às vezes, uma derrubava a sua vizinha, e
então um riso louco, que parecia a única manifestação de sua vida pessoal, as
agitava a todas ao mesmo tempo, apagando, confundindo aqueles rostos indecisos
e careteantes na gelatina de um único cacho cintilante e trêmulo. Numa
fotografia antiga que deviam dar-me um dia, e que conservei, o seu bando
infantil já oferece o mesmo grupo de figurantes que mais tarde o seu cortejo
feminino; sente-se ali que já deviam produzir na praia certa mancha singular
que obrigava a olhar para elas; mas ali não se pode reconhecê-las
individualmente senão por intermédio do raciocínio, deixando o campo livre a
todas as transformação possíveis durante a juventude até o limite em que essas
formas reconstituídas fossem dar numa outra individualidade que é preciso
também identificar e cujo belo rosto, devido à concomitância de uma estrutura
elevada e cabelos crespos, tem possibilidade de haver sido outrora essa redução
de careta mirrada que o retrato apresenta. [...]
EU DESISTI.
Proust é louvado por uma suposta sacação que
praticamente virou uma “teoria psicológica”, a teoria da memória involuntária:
especificamente, um belo dia ele come uma madalena e aí todo um trecho de sua
infância que jazia soterrado na inconsciência volta à tona. Mas, vamos e
venhamos, fora o Proust alguma outra pessoa alguma vez conseguiu se recordar de
uma infância inteira só porque comeu uma coisinha, ou sentiu um cheirinho? Uma
teoria tem que ser universal, aplicável a todos.
O que há de "errado" no texto de Proust?
A sintaxe arcaizante (conquanto seja um escritor inaugurador da modernidade
literária francesa, suponho), com suas frases tipo "alemão" que
quando terminam você já esqueceu o começo? Não necessariamente. O Saramago tem
uma sintaxe estranha e é genial. O problema é a overdose de “prosa poética”, a,
digamos, “masturbação mental”, a divagação (o fluxo de consciência para usar o
termo técnico) levada aos píncaros. Haja paciência! Ninguém merece!
Tem trechos inteiros que você lê, lê, e depois se
pergunta “o que foi que acabei de ler?” e não sabe. Você leu uma “sopa de
palavras”.
Estou exagerando? Então tente. Depois me conte.
Adoro Dickens. Adoro Machado. Adoro Balzac. Adoro
Mann. Adoro Eça. Mas quer saber? ODEIO PROUST.
Fonte: Literatura & Rio de Janeiro, blog de
Ivokory
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