O Irmão
Por Cyro de Mattos
De meu pai e minha mãe só tive um irmão. Nasceu
primeiro. Mais velho do que eu
quase quatro anos. Ninguém melhor do que ele no estilingue. Tinha uma pontaria
certeira. Um craque no jogo de futebol. Zé Orlando atuava como lateral
esquerdo, tinha uma perna esquerda de
fazer inveja. Sabia como marcar o ponta-direita, anulando-o na partida.
Chutava a bola com precisão para o gol levando perigo à defesa
adversária.
Era o meu ídolo. E mais: o meu protetor. Tirava satisfação ao menino maior do que eu que me
desafiava para brigar no sério. Ele dizia para o menino maior do que eu: “Você
não gosta de brigar com um menor do que você e se gabar de porreta, venha
enfrentar agora um de seu topete e vamos ver quem ganha.” O menino saia dali no
mesmo instante envergonhado, amedrontado. No dia seguinte, deixava de me chamar
para brigar no sério quando perdia uma partida de bola de gude e não se
conformava com a derrota. De agora em diante, respeitava minhas vitórias em
qualquer brincadeira. Não ficava se vingando por ser o derrotado, mangando naquela cantigazinha, que me dava raiva: “Ciro,
ciroca, nariz de taboca, vendeu a namorada por dez reis de pipoca!”
Gostava de pentear o cabelo com esmero,
depois de repartido com o pente. O lado
direito ficava maior que o esquerdo.
Alisava o cabelo com brilhantina. Sempre
me pedia que fosse entregar o
bilhete no qual declarava seu amor para
a menina que havia sido a escolhida para ser sua namorada. Cumpria a missão com gosto, entre
compenetrado e alegre. Quando trazia a
resposta por escrito, a eleita
dando o sinal verde, marcando o primeiro
encontro no Cine Itabuna, na matinê de domingo, eu ficava sorrindo de contente.
Via na expressão do rosto que o irmão estava satisfeito com a conquista.
Dizia que não queria outro mensageiro, o
mano Cyro dava-lhe sorte. Eu me sentia recompensado com as suas palavras
de agradecimento. Nem precisava que ele agradecesse. Prazer eu tinha mesmo era de levar o bilhete para a eleita e retornar depois com a resposta dela,
afirmando que o pedido do irmão para namorar com ela havia sido
aceito.
Tinha acabado de ingressar no primeiro
ano do curso ginasial. Na pequena cidade só havia um ginásio. Por isso
estudar no único ginásio da cidade era
ser olhado pela gente importante como um
estudante de categoria especial.
Significava que o adolescente conseguia atingir o grau mais avançado como
estudante na cidade. O estudante local só
levava desvantagem com relação ao adolescente que fosse estudar interno em algum colégio na Capital. As meninas
preferiam namorar o adolescente que estava estudando em algum colégio de
Salvador.
Desfilava na cidade exibindo com orgulho
o blusão caqui, engomado e bem-passado
pelas cuidadosas mãos maternais.
Bordadas de azul, as letras maiúsculas no bolso superior direito
do blusão chamavam atenção, pareciam que tinham um brilho diferente. O momento
triunfal no desfile acontecia na matinê
do Cine Itabuna antes de começar o filme.
Havia adolescentes que estudavam no Colégio dos Irmãos Maristas, outros no Padre Antonio Vieira
ou Salesiano, em Salvador. O irmão fazia
parte agora do grupo seleto de estudantes
que estudava na Capital. Não demorou muito que fosse juntar-me a ele no
internato do colégio Irmãos Maristas. Anos depois, o pai alugou um apartamento
no bairro dos Aflitos. A mãe veio morar nesse apartamento para cuidar dos
filhos, que agora cursavam a faculdade. O
irmão formou-se em medicina, diplomei-me em advocacia.
De retorno à cidade natal como médico, o irmão
tornou-se em pouco tempo um profissional
conceituado. Eu exercia nessa
época, idos de 1963, a advocacia com boa clientela. De repente decidi fechar o
escritório e fui morar no Rio. Estava
determinado a trabalhar em jornal, no Rio, e, paralelamente, dedicar-me à
literatura. Voltei à região apenas para casar
com a moça que conheci numa festa,
em Ibicaraí. Fazia anos que estávamos noivos.
Casado com Mariza, continuei a exercer
o jornalismo no Rio. Só retornei à cidade natal anos mais tarde para
resolver problemas familiares, depois que minha
mãe faleceu. E aqui fiquei em definitivo. Foi então que soube como
a vida estava se encarregando de
me separar do irmão. Ah, a vida, com suas invenções, difíceis de serem sentidas e
compreendidas.
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