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sábado, 25 de abril de 2015

CIRCUITO DAS ARTES 2015


                    Sante Scaldaferri – entre ex-votos e meninas


Sobre o artista

A vida de Sante Scaldaferri já deu um livro... aliás, vários livros! Nascido em Salvador em 1928, filho de italianos, Sante viveu parte de sua infância, até os oito anos de idade, numa pequena cidadezinha da região de Basilicata, no sul da Itália perto do mar Tirreno. Depois voltou para a Salvador, morando por muito tempo na Ladeira dos Aflitos. Fez o curso primário na Casa d’Itália e o secundário no Colégio Sophia Costa Pinto com outros futuros artistas, como Genaro de Carvalho, seu grande amigo.
Começou sua formação artística nos anos 1950 na Universidade Federal da Bahia, primeiro na Escola de Belas Artes, onde se formou em Pintura em 1957, com mestres como Mário Cravo Jr., e, logo em seguida, estudando cenografia com Giani Ratto na Escola de Teatro. Influenciado pela disciplina "Estudos Brasileiros", ministrada por Hélio Simões, Carlos Eduardo da Rocha e Cid Teixeira, começou a desenvolver interesse pela cultura popular e artesanato do Nordeste. Porém, seu engajamento com o meio artístico foi anterior à Universidade.
Desde os anos 1940, participava de movimentos, salões de arte e atividades culturais junto a vários artistas e poetas da chamada "Geração MAPA", inclusive fez editoração da revista MAPA. Fez parte da famosa turma do Campo Grande, acompanhando todo tipo de manifestações e convivendo com muitos personagens populares. Mais tarde, colaborou com Glauber Rocha e o Cinema Novo como cenógrafo e ator. Foi assistente de Lina Bo Bardi à época da criação do Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão, onde também foi professor de educação artística para crianças. Segundo Sante, foi com ‘Dona Lina’, entre 1958 e 1964, que “aprendi a ser profissional”.
No princípio da carreira, em Salvador, implantou e dirigiu os Centros Artesanais do SESI (Serviço Social da Indústria) no Largo do Papagaio e no Retiro, do SESC (Serviço Social do Comércio) em Nazaré, e do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia) no Pelourinho. Assim, nos anos 1970, teve destacada participação em projetos de educação artística vinculados a programas sociais.
O repertório de referências filosóficas, teóricas e artísticas de Sante decorre de muitas vivências, viagens e, principalmente, de estudos sistemáticos de arte e de dedicação ininterrupta à pintura. Fez a primeira exposição individual na Escola de Belas Artes à qual se seguiram umas 40 individuais até hoje e mais de 80 coletivas, realizadas no Brasil e no exterior. Recebeu uma dúzia de premiações e vários críticos, poetas e artistas renomados escreveram sobre sua obra, de Jorge Amado a Umberto Eco. Participou em inúmeras feiras de arte e salões nacionais e internacionais. Expôs três vezes na Bienal de São Paulo, além da II Bienal de Pintura de Cuenca (Equador), I Bienal de Buenos Aires (Argentina), III Bienal de La Habana (Cuba), Bienal Interparlamentar do Mercosul (Uruguai), dentre outras grandes mostras. Mais de 25 instituições e museus no Brasil e no exterior tem obras suas.
Dentre as inúmeras publicações e referências ao trabalho de Sante, destacam-se as seguintes obras monográficas que resumem sua trajetória: “A Cultura Popular na Arte de Sante Scaldaferri” (1977), o catálogo em comemoração aos trinta anos de profissão nas artes plásticas (1988), “Sante Scaldaferri – Pop/Bienais” (2011) e “Sante Scaldaferri – baiano, nordestino, brasileiro, universal” (2014) de Claudius Portugal e editado pela Assembléia Legislativa da Bahia.
Desde início dos anos 1980, o trabalho de Sante foi influenciado notadamente pelo Neo-expressionismo, a Transvanguarda e a Pop Art, consolidando uma fase da produção artística que o próprio artista denomina “Fase Antropomórfica” a partir da criação de figuras volumosas e inspiração nos traços dos ex-votos. Nos anos 1990 começa a desenvolver pinturas com inserção de objetos (sobretudo pequenos bonecos de pano e continuando com ex-votos) e a explorar a infogravura associada à manipulação de imagens com auxilio de softwares, trabalho que realiza até hoje em sua bela casa em Itapoá na companhia inseparável de sua querida Marina.




Sobre a obra

Da produção das três últimas décadas de Sante Scaldaferri há pelo menos dois elementos que emergem claramente como componentes essenciais de sua gramática artística: os ex-votos e as volumosas figuras femininas – que eu chamei de ‘meninas’ e Sante adorou!
Os ex-votos, denominação originada pela abreviação latina de ex-voto suscepto – traduzido como "voto realizado" ou “voto cumprido” – são objetos como pinturas e estatuetas doados às divindades pelo fiel como forma de agradecimento por um pedido atendido.  Segundo Sante, “a pessoa quando recebe a graça e vai pagar a promessa, ela mesma pode esculpir em madeira a parte do corpo que ficou curada, pode encomendar a um artesão especializado tanto a escultura como uma pintura, narrando o milagre. O que antes era o ‘voto’, após a obtenção da graça e pagamento da promessa, com a entrega, transforma-se em ‘ex-voto’”. As formas mais conhecidas de ex-votos são de madeira, mas existem também ex-votos de cerâmica e fundidos em metal e, atualmente, ex-votos industrializados feitos em parafina e plástico a partir de moldes. As peças apresentadas na sala menor do ICBA são bons exemplos da produção mais recente inspirada pelos ex-votos em infogravura em diálogo com a prateleira com peças originais – parte da coleção de David Glat gentilmente cedida para esta exposição.
As ‘meninas’ de Sante são figuras femininas, volumosas, exuberantes e nuas que depois de um tempo ganharam um rabinho, reforçando uma feição porcina em muitos casos. Nesta sala, escolhemos trazer para o público um repertório de ‘meninas’ em desenhos realizados no início dos anos 1990, mas que nunca foram expostos. Acrescentamos algumas pinturas de elaboração mais recente, em escala maior e mais familiares do meio artístico, para acompanhar as séries de desenhos.
Sobre suas figuras, a exemplo das ‘meninas’, Sante enfatiza: “não é gorda, gordinha, gorduchinha, fofinha ou fortinha. É uma arte muito séria e forte, possuindo um conteúdo profundo. São os ex-votos assumindo a condição humana para expressarem suas dores, angústias, invejas, ódios, ressentimentos, ciúmes, paixões, amores, mentiras, poder, alegria, medo, pavor, terror, corrupção de todo tipo, violência, assassinatos, enfim, tudo inerente ao ser humano. É a verificação plástica/visual do bem e do mal.” Ainda, segundo Frederico Morais, “não é que a miséria se desvaneceu, como por milagre, ou que a corrupção dos sentimentos tenha sido extirpada do ser humano. O que Scaldaferri parece ter percebido é que por mais perversa que seja a vida do homem, não importa o grotesco ou o ridículo das situações, existe ainda dignidade e esperança”. Esse ‘humanismo santiano’ o inspira a pintar "gente com cara de ex-voto, e não ex-voto com cara de gente" como reconhece o próprio artista.
Apesar de que a maioria dos críticos (a exemplo de Clarival do Prado Valladares e Carlos Von Schmidt) aponta para associações da obra de Sante com o Neo-expressionismo alemão dos anos 1980 e com a Transvanguarda italiana, para mim, grande parte da visceralidade da temática do artista e da feição dos seus personagens remete a um espírito anterior, dos anos 1950: a Arte Bruta, denominação dada por Jean Dubuffet às expressões feitas por autodidatas, crianças, criadores livres da influência da arte oficial, pacientes psiquiátricos e pessoas à margem da tradição e do sistema artístico. No Brasil, Arthur Bispo do Rosário é um dos artistas mais associados com essa produção. Claro que Sante, de formação acadêmica e que sempre esteve inserido no circuito regular da arte, não é precisamente um exemplo do grupo identificado por Dubuffet. Porém, muitas das referências populares às quais sua obra faz alusão, os ecos da “estética do feio”, o caráter por vezes grotesco das formas, a desconstrução do “ideal de beleza” e a fartura das camadas pictóricas que Sante trabalha, dialogam formalmente com trabalhos de artistas do Museu das Imagens do Inconsciente, por exemplo.
Sante consegue conjugar o regional e o universal com rara habilidade, chamando a atenção de artistas como Alex Flemming e Cai Guo-Qiang. Sua temática brasileira, focalizada na religiosidade e na cultura popular do Nordeste, é desenvolvida mediante técnicas pictóricas de linguagem contemporânea. Assim, além da simbiose entre erudito e popular, as referências locais e questões universais aparecem entrelaçadas em criações de uma potencia que se afasta do provinciano para se inserir em contextos muito mais abrangentes. A obra de Sante é um depoimento dos problemas crônicos do sertão e, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a condição humana de qualquer pessoa no centro de Kuala Lumpur. Inspirados nos ex-votos de madeira seus rostos podem conversar tanto com um cordel recente encontrado num mercadinho do interior de Alagoas bem como com as Demoiselles d’Avignon de Picasso no MoMA. Talvez ele nem tenha percebido, mas a densidade de suas encáusticas flerta tanto com a espessura de um Jasper Johns como com os acúmulos de acrílica de Tiago Martins. E tudo isso com uma expressão tão ‘santiana’ que o torna inconfundível!



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