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segunda-feira, 23 de maio de 2016






INICIADA A PELEJA    

                                                   Fernando Sabino                                                   



 Justamente na hora do primeiro jogo de nosso selecionado na Europa, realizava-se uma reunião da Diretoria do Banco, a que ele não poderia deixar de comparecer. Não teve dúvidas: arranjou emprestado um radiozinho transistor, com dispositivo de se adaptar ao ouvido para audições individuais, meteu-o no bolso e bateu-se para a reunião.
- Que é isto? – estranhou um dos diretores: - Você ficou surdo?
Acomodou-se junto à mesa: a reunião já havia começado e o jogo também. Didi passa para Mazzola, este para Pepe, Pepe novamente para Mazzola. Proposição de um dos diretores sobre o incremento do crédito agrícola. Escapada de Garrincha pela direita. Estamos certos de que nossos colegas aprovarão medidas que permitem a imediata normalização das operações.
- Aprovado;
- Aprovado.
- Impedimento!
- Como?
- Nada não. Aprovado.
A pelota é devolvida à circulação: os produtores não poderão obter senão um empréstimo equivalente ao valor de sua remissão que será adicionado ao montante da dívida. Falta perigosa a ser cobrada nos limites da grande área. O débito remanescente e oriundo do financiamento previsto na lei representa um perigo para a cidadela brasileira, defendida por Gilmar. A dívida será computada no ano imediatamente posterior à safra liberada. Cobrada a falta. Defesa es-pe-ta-cu-lar de Gilmar!
- A menos  que a garantia oferecida, nos termos da Portaria número quatro...
- Centra logo, homem de Deus!
Didi recebe de Belini e organiza novo ataque. Os lavradores beneficiados, quaisquer que sejam os termos da dívida assumida...
- É agora! Vai chutar.
- Perdão?
- Perdão o quê?
- Não entendi o seu aparte.
- Ah, desculpe... Pode prosseguir: foi fora.
Os termos da dívida assumida...
- O senhor está me ouvindo bem ai?
- Perfeitamente. Por quê?
- Esse seu aparelhinho no ouvido... Muito bem: prossigamos.
A reunião prosseguiu sem novidades até que Garrincha se apoderasse novamente da bola. Mazzola prepara-se para chutar... Pânico na defesa italiana.
- Gol do Brasil! - berrou ele, incontido.
Os outros diretores se voltaram, estupefatos.
Tornou a desculpar-se como pôde, acomodou-se novamente na poltrona e continuou a participar da reunião, que prosseguia agora sob estranheza geral: os lavradores, em face dos dispositivos que regulam o débito consignado no exercício anterior... Ele foi-se erguendo lentamente da poltrona, braço estendido, fisionomia aparvalhada.
- Que está acontecendo., afinal?
- Esperem, esperem – pediu,  olhos esbugalhados, imóvel como um perdigueiro ao amarrar a caça, e contendo com sua postura avançada, dribla os dois zagueiros, invade a área, tira o goleiro da jogada...
- Mais um! - saltou ele na cadeira. - Agora não tem mais perigo: podemos prosseguir.
Os comentários corriam em torno à mesa: que diabo de rádio é esse? Deixa ver, que coisa interessante... Tão pequenino. Eles já não sabem mais o que inventar. Liga aí para a gente ver. Quanto está? Gol de quem?
- De Pepe. Espetacular.
- Mais pra cá, que eu também quero ouvir.
- Põe no meio da mesa logo de uma vez.
Pôs o radiozinho no meio da mesa, e a Diretoria, por decisão unânime, em face de tão grave conjuntura para os destinos de nossa nacionalidade, concedeu-lhe primazia entre os assuntos em pauta. Mazzola era um gigante dentro do campo. Didi, um verdadeiro assombro.
- Olha  só esse passe.
-O homem está em todas
Ao fim, os diretores, esquecidos do que dispõe a  Lei nº 2.697, sobre a concessão de crédito agrícola em face da safra liberada no ano anterior, congratulavam-se, entusiasmados: havíamos vencido por quatro a zero.
- Eu sempre disse que o problema de Feola estaria no ataque.
- Gilmar foi o maior, senhores.
- Você viu aquela defesa?
- A leitura do relatório, em face das circunstâncias, a meu ver deverá ficar para a próxima reunião.
Aprovada a proposição, deram por encerradas as atividades daquele dia e foram, incorporados,  tomar um uísque para celebrar.



*Fernando Sabino  nasceu em Belo Horizonte, em 1923. Viveu dois anos nos Estados Unidos como auxiliar do Escritório Comercial do Brasil e exerceu funções de adido cultural de nossa embaixada em Londres. Suas crônicas abordam a vida na cidade grande com seus desacertos e cenas ridículas do cotidiano. É também contista e romancista. Seu romance “O Encontro Marcado” tem recebido edições sucessivas e foi traduzido para diversos idiomas. A história “Iniciada a Peleja” pertence ao volume “O Homem Nu”, 1969. Faleceu no Rio de Janeiro, em 2004.


















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