Machado na Cerca
por Cyro de Mattos
A casa-sede da fazenda
com a pintura nova: as paredes brancas, portas e janelas amarelas. Ventilação e
luminosidade invadem agora todos os cômodos, o que sempre quis o coronel Sotero
Bala. Andorinhas fazem o ninho nas laterais do telhado novo. Trissam
alegres sob a luz pura do dia. Anos passaram, a casa-sede ao abandono, servindo de morada de ratos e morcegos no forro, ninho de barata e lagartixa nas gretas.
Por
trás da casa-sede, a chácara zelada por mãos competentes do novo capataz. O
chão limpo, capinado com gosto para se achar uma moeda. As árvores frutíferas
bem cuidadas, sem casa de cupim nem trilhas de formiga. A natureza ali alegre,
pássaros cantando e bicando as frutas.
Os
pastos gramados para os animais de serviço ao lado da chácara. Cinco divisões.
O Ribeirão de Água Doce passa na baixa, brilha como um lagarto sob o sol de
verão. Atravessa os pastos e alcança,
adiante numa curva, as roças novas de cacau. Seis barcaças e uma
estufa não param de receber cacau durante as colheitas, quase o ano todo.
Descansa
na rede, o peso do corpo quase tocando até o chão. Sono bom com a boca aberta e
o sonho leve reconfortam corpo e alma, embalando-o por entre vagas serenas. E o bater ritmado do
coração. Charuto apagado, esquecido no piso de cimento.
Céu
alagado de luz. Periquitos chegam numa nuvem estridente, pousam nas bananeiras
da chácara. A zoada acorda-o, os olhos entreabertos divisam seres e coisas do mundo de fora. Vê primeiro
os burros com a muda, amarrados pelo cabresto
aos dois moirões do terreiro. O tropeiro vigiando-os, sentado no cepo da
jaqueira perto das barcaças, fumando o cigarrinho de palha. Olhos fiéis de quem
sem pressa aguarda a ordem. Ouvidos atentos para qualquer ruído estranho.
A voz
roufenha ordena ao tropeiro:
- Siga na
frente, logo depois chego.
Boceja como se quisesse sorver todo
o ar puro em volta. Antes de retornar à
cidade, resolve fazer ligeira inspeção na casa-sede. Na próxima vez que voltar à fazenda quer
encontrar as coisas no mesmo lugar que deixou. Abre, fecha
gavetas. Passa os olhos com vagar sobre coisas nos móveis e
cômodos. Agora que havia recuperado a casa-sede, o telhado novo, com mais
cômodos, sanitário com piso ladrilhado e paredes azulejadas até a metade, não
pode desfrutá-la mais alguns dias. Ter que voltar para a cidade, diacho! Também
pretendia vistoriar as roças novas de cacau nas baixas. Ver os cacaueiros
salpicados de flores, admirando-os sem pressa. Ficar embevecido com as árvores
diante dos olhos como num jardim florido, prometendo doçuras na primeira
safra, como se antevê nos galhos
arriados com o peso dos frutos.
A
mulher tinha avisado. Neste ano de eleições seu lugar é aqui na cidade. Nada de
pensar em fazer melhoria na casa-sede da fazenda, nem vistoriar as roças novas.
O novo capataz não sabia cuidar das roças com zelo? Tanto das velhas como das novas melhor do que
o próprio dono. Corria um risco grande, se ficasse muito tempo na fazenda em ano
de eleições. Ia enfraquecer o mando político, dando rédea larga ao doutor Raposo Primeiro, inimigo político
manhoso, o pior dos adversários. Não perde festa de casamento, aniversário e
batizado para fazer discurso que empolga,comove, desarma o coração rancoroso do vivente mais
embrutecido. Deixa escorrer a palavra
fácil no melhor da festa, arrancando admirações e aplausos no ambiente animado com a fala dele. Enterro
então é um de seus momentos marcantes como orador sem igual na cidade, numa
hora mais triste de todos. Em momento inspirado, as palavras que solta doídas
fazem a família do morto e os presentes ensoparem o lenço com o choro
derramado. Acontece até desmaios, desses que pode levar a vítima ao último
suspiro, se não for socorrida às pressas. Sempre ressalta as qualidades do
defunto, marido exemplar, pai generoso, cidadão honrado. Tanto emociona que só
falta o falecido sair do caixão para
agradecer o palavreado afetivo, solidário, em momento indesejado, que os
humanos se rendem submissos, pois nunca
conseguem desvendá-lo. Guarda o
melhor da fala para o final, afirmando com a voz trêmula que para isso fomos
feitos todos nós, como o vento que passa ninguém fica nesta vida. Nascer, viver
e morrer, eis na verdade absoluta o que
somos. Descansar, enfim, no jardim da piedade e saudade, mas deixar como
consolo o legado que não tem preço, ser
lembrado sempre em bem-querer na saudosa memória dos que ficam no lado de cá
deste mundo, nem sempre justo para muitos.
A
mulher, Benzinha, não deixa de ter suas razões. O loquaz Raposo Primeiro não
vacila quando é para conquistar mais
amigos, adeptos, eleitores novos, com o único objetivo de conquistar um dia o
comando da cobiçada Prefeitura Municipal de Bom Jesus do Mocambo.Quando isso
acontecer, só para ele, um esperto fino,
o pedaço melhor do bolo, apenas
um pouco para a corja dos correligionários bajuladores, que causam nojo.
No fundo só querem tirar proveito do
poder político, desprovidos de qualquer amor pela cidade. E dona Benzinha, sempre vigilante,
alertando-o: Veja que até os correligionários mais antigos de seu círculo
político estão fugindo para o outro lado, sem motivo que justifique a atitude,
a não ser o da crença de que este ano a prefeitura municipal vai ser de doutor Raposo Primeiro. E não da pessoa que você aponte e abone para se candidatar a
prefeito, como há anos acontece. Mas os
jagunços estão com ele aí mesmo, prontos para dizerem quem é que fala mais alto e com melhor som nestes cantos
do Japará. A qualquer momento que precise, atrás como na frente, só querer e
ordenar, que eles sem hesitar obedecem. Principalmente num caso de urgência
urgentíssima, que se delineia agora como uma situação incontornável, a cada dia
se apresentando com sua feição nada
confortável, ameaçadora, de enorme perigo.
Zé
Taboca é o seu apelido. Modelo incomum de força natural, cabeça enterrada no
pescoço grosso, ombros largos. Braços compridos, musculosos, mãos grandes, calosas. Com o machado desfere golpes
profundos na árvore enorme, de tão
grossa um homem não consegue abraçar, às vezes dois. Faz a boca grande,
funda em um dos lados, no outro talha e sangra o tronco com
machadadas que não cessam. Rosto respingado de suor, pele negra luzidia,
músculos dos braços cheios de vigor. Até sentir que a árvore inclina-se aos
poucos, vem sendo empurrada com força
pelo vento, um sorriso nos dentes brancos alumia o rosto bexiguento. Lá se vem
rasgando os galhos das outras a árvore que tomba, queda que estronda o chão e ecoa pela
mata como barulho do mundo se acabando. E o buracão no teto da mata.
No
mole ou no duro os passos seguros. Pelo caminho estreito agora, forrado de
folhas que caem das arvores grandes. Bornal a tiracolo, espingarda, facão na
cintura, machado na mão, lâmina sempre afiada. Pretende derrubar uma nesga de
mata comprada ao carvoeiro da vila. Limpar o chão, erguer a tapera, ali viver
com mulher e filhos. Plantar roça de
mandioca, construir uma casa de farinha, vender o produto na vila. A mulher vai
se encarregar do criatório com bicho de terreiro.
Desce
o morro na parte de uma capoeira rala. Segue
junto ao ribeirão que corta as roças novas de cacau do coronel Sotero
Bala. Daqui a pouco alcança a estrada
real, caminha nela umas duas horas até encontrar o desvio depois da lagoinha e a
gameleira velha. Pouco depois do desvio chega até o pé da Serra da Onça
Pintada. Sobe pelo espinhaço da serra e
lá no topo vai percorrer os marcos de pedra pontuda nos quatro cantos da nesga
de mata comprada ao carvoeiro. Pensa em começar a derrubada dos paus grandes
amanhã cedo.
Ao
divisar a lagoinha e a gameleira velha, interrompe a caminhada com olhos
inquiridores. A estrada real fechada com uma cerca de seis fios de arame.
Roceiros grampeiam o arame novo nas estacas. Seis fios impedem a passagem de qualquer
pessoa, até mesmo de bicho menor, como
bezerro de poucos meses. Despropósito que não pode ser feito na estrada real.
- Quem mandou fechar a estrada com a
cerca?
- O coronel Sotero Bala.
- Merda de coronel Sotero
Bala! – desfere golpes firmes com o
machado, repetidos numa fúria incontrolável.
A estrada real vem do
tempo do avô Bacabal, passagem livre de
todo mundo, pensa, enquanto os roceiros recuam assustados, vendo o arame
embaraçado nos pedaços de estaca pelo chão como uma coisa só.
- Ficou doido? – um com os olhos de
temor, amarelados.
- Afronta dessa o coronel Sotero
Bala não engole – outro com a voz trêmula, fazendo o sinal-da-cruz no peito.
Veias inchadas no pescoço como cipó fino,
zangado retoma os passos na estrada real. Do estômago à cabeça a raiva circula.
Vento morno sopra no peito enfezado. Sua passagem assusta passarinhos pelas margens.
Um sol de fim de tarde ainda brilha
na lagoa onde garças pescam peixinhos e sapos pequenos no trecho raso.
As
botas tiram sons fundos no assoalho da sala. Desce a escadinha do alpendre. O
homem à sua frente, cabelos desgrenhados, rosto suado. Medo nos olhos.
Numa
voz forte:
- Abra a boca e fale logo, homem,
viu alguma assombração?
- A cerca da estrada real.
- O que aconteceu?
- O machadeiro Zé Taboca botou
abaixo. Nem ligou quando soube que a cerca na estrada real foi por ordem do
coronel.
- Façam a cerca de novo, amanhã
quero conhecer esse desmiolado Zé Taboca.
Os jagunços cedo chegam
à casa-sede da fazenda, montados
nas mulas bem tratadas, crinas aparadas,
cascos com ferraduras novas, arreios
vistosos. Armados de revólver, repetição,
punhal e faca. Barbas e cabelos grandes, chapelão, lenço vermelho no
pescoço. Em cada lado protegem o coronel Sotero Bala no cavalo pampa, que só
ele monta. Os jagunços são oito, dois deles irmãos gêmeos, temidos até pelo
resto do bando. Com que frieza e cálculo executam qualquer empreitada de morte.
Calados
seguem os cabras e o coronel Sotero Bala. Aproximam-se da cerca que os homens
estão erguendo pela segunda vez. Apressam
as montarias quando avistam um
negro alto e forte, caminhando sozinho pela estrada. Ele está vindo na direção
da cerca, os passos ligeiros, quase correndo.
De
novo os olhos inquiridores de Zé Taboca circulam pela cerca; de novo está sendo feita por ordem do coronel
Sotero Bala. O branco dos olhos anuvia, o corpo estremece incontido de raiva.
Frente a frente dos jagunços, estes com
as armas engatilhadas. Careta medonha, numa grande raiva, torce o rosto cor de
carvão. Fúrias invisíveis apossam-se do
corpo. Suspende e desce o machado. Funga com as narinas acesas de ódio, espuma
e resmunga. Diabo de coronel Sotero Bala,
que a ele não amedronta. Cospe com violência, passa a mão nos olhos que
ardem, vai derrubando, uma a uma, todas as estacas. Corta os arames.
Os jagunços impacientes, à espera da ordem
para que detonem uma saraivada de balas, enviando o mais rápido aquele negro
desmiolado para as profundas do inferno,
acabando assim com a afronta
descabida, dardejando nos olhos incrédulos do coronel Sotero Bala. Encolhido na
sela do cavalo, não acreditava no que
acaba de ser visto. As sobrancelhas
espessas franjam-lhe a testa. “Um homem corajoso como esse não merece o destino
de machadeiro” , pensa.
Para
o jagunço mais perto dele:
- Contrate o homem para ficar do
nosso lado.
Os
jagunços não chegam a compreender o que fez o coronel Sotero Bala deixar de dar
a ordem para que eles detonassem as repetições e acabassem com tamanha afronta
acontecida ali mesmo.
Atrás, um deles permanece na conversa mansa com Zé Taboca como se fossem velhos conhecidos. O assunto não
deixa de ser interessante, o machadeiro acha até graça.
·
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro do Pen
Clube do Brasil, Academias de Letras da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. “Machado
na Cerca” pertence
ao livro O
Velho e o Velho Rio, contos e novelas, no prelo da Editora Escrituras (SP).
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