Lançador de
Fundo de Panela
Cyro de Mattos
Depois que fui
ao cemitério e vi a cara da morte, no outro dia fiquei em casa. Não tinha vontade
de sair para brincar com os amigos. Era tempo de férias de fim de ano, o sol de
verão acendia todas as coisas lá fora, convidando os meninos para as
brincadeiras costumeiras. Como jogar bola no campinho da beira-rio, roubar
fruta madura nos quintais espalhados na cidade, pescar e tomar banho no rio.
Mas a cena
daquela mulher passando a mão na cabeça do marido morto no caixão, lá no
cemitério, não saía de dentro de mim. O
choro dela permanecia nos meus ouvidos.
Sentia que uma tristeza tomava conta de mim como nunca havia acontecido,
impedindo que eu fosse brincar com os amigos lá fora na manhã ensolarada.
Minha mãe perguntou o que era que estava se passando comigo, pois
em qualquer dia das férias eu não costumava ficar dentro de casa. Andava pelo
mundo com o punhado de amigos queridos, divertindo-me nas aventuras que a vida
oferecia na manhã pura com o céu de nuvens como flocos de algodão. Respondia
que não estava acontecendo nada, apenas tinha amanhecido sem querer ir brincar
com os amigos, com um enjôo diferente na
barriga, que me tirava até a vontade de fazer a refeição da manhã.
Aquilo ia passar logo.
Com a falta de
apetite, mal cheguei a tomar a xícara de café com leite e comer uma pequena
fatia do requeijão. Deixei de lado o pãozinho quente, a batata doce cozida, nem
quis ver o bolo de aipim, iguaria que
mais gostava. Não dispensava esse tipo de bolo quando mamãe de vez em quando
fazia para acompanhar a refeição matinal.
Fiquei em casa
mais dois dias, sem coragem para andar solto na vida lá fora, sob o sol do
verão. Tinha nojo de tudo. Dava vontade de vomitar. Apressado ia até o
banheiro. Metia o dedo na garganta, vomitava, mas não conseguia tirar aquela coisa visguenta que só incomodava lá dentro de mim. Tentava afastar para longe aquela sensação
misturada com terra e defunto deixada pela morte, desde que visitei o cemitério pela primeira
vez para ver uma pessoa ser enterrada.
Escutei minha
mãe dizer na cozinha para a empregada
que aquela falta de apetite e nojo das coisas que eu estava tendo era por causa
das lombrigas que deviam estar comendo minhas tripas. Já estava na hora de eu
tomar o remédio de óleo de rícino para botar as lombrigas para fora da barriga.
Aí fiquei alarmado, senti que não podia
ficar mais em casa dando a entender à minha mãe que minha falta de apetite era
por causa das lombrigas na barriga. Tratei logo de arranjar disposição para ir
brincar com os amigos em qualquer canto da cidade.
Então, no
terceiro dia depois que tinha conhecido o cemitério e visto o homem ser enterrado, saí de manso lá de
casa, sem que a mãe percebesse. Fui encontrar com os amigos na Praça Camacã, onde
havia o campinho de futebol junto a uma das margens do rio. Como sempre fui
de calção de mescla azul, , camisa
aberta no peito, pé no chão. Quando comecei a pisar o chão barrento da praça,
desviando das poças de lama deixadas pela chuva que caiu à noite, vi por fora da terra uma parte do
fundo esmaltado da panela, a
outra estava enterrada. Apressado, peguei um pedaço de ferro que encontrei ali
mesmo, enfiei na terra, fazendo força
para desenterrar a outra parte do fundo
da panela. Fiz tanta força, que parecia que eu ia romper alguma veia do pescoço.
Fiz isso várias vezes. Até que enterrei o pedaço de ferro mais fundo e consegui desenterrar o fundo da panela.
Tive aquela alegria forte quando finalmente desenterrei o fundo da
panela, que nem lhe conto. Aí comecei a lançar o fundo da panela para o alto e
acompanhar seu giro como se fosse um disco ligeiro atravessando as camadas
transparentes do ar, brilhando na manhã de sol esplêndido.Várias
vezes lancei para o alto, tentando fazer
com que o fundo da panela chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um
menino fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. O apelido do
menino era Bigodinho porque já estava
começando a aparecer nele uma sombra no lábio superior, o que lhe dava um ar de
orgulho. Ele gostava de dizer aos outros meninos que por causa daquele risco
escuro ali no lábio superior já estava
ficando homem. Claro que ele era maior do que eu. Mas tinha confiança em mim. Embora menor do
que ele, aquela brincadeira de lançar
fundo de panela para o alto também sabia fazer. Era só aparecer a primeira oportunidade.
Esperava que
daquela vez o fundo da panela fosse
subir mais alto. Quando o lancei como um disco bem para o
alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de olhar ele atravessar
célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com seus raios de
sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda do que quando foi lançado e
desceu como se quisesse me atingir. Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar
quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto, cambaleei e caí. Botei a boca no mundo,
chamando por minha mãe. Não conseguia me levantar. Rolava na terra úmida.
Gritava que não queria morrer.
Soube depois que seu Isaías, que
tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria, foi quem me levou nos seus braços cabeludos
para minha casa. Quando acordei, escutei
a empregada dizer que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha
mãe prometeu que se eu escapasse
daquela, ia fazer uma promessa para São Francisco.
Felizmente não
era daquela vez que ia morrer. Ainda meio tonto, abri os olhos com dificuldade
e vi o médico limpando com o algodão embebido no iodo o sangue que escorria do talho na testa. Deu
doze pontos para fechar o talho na testa. Cobriu-o depois com gaze e
esparadrapo. Aplicou-me uma injeção oleosa para combater o tétano. Senti uma
dor terrível quando o líquido da injeção
penetrou minhas carnes, mas daquela vez não chorei, não urinei nem
borrei as calças.
Prometi à minha mãe que nunca mais
ia jogar fundo de panela para o alto, só porque queria fazer o mesmo que menino maior do que eu sabia fazer. Pedi
que ela não fizesse a promessa a São Francisco porque tinha sido salvo pelo
santo, como ela acreditava. Não queria
vestir aquela roupa igual a de um frade franciscano, parecendo mais um
vestido folgado de mulher. O cordão
grosso amarrado em volta da barriga, crucifixo grande de madeira no peito, pendendo na corrente. Vestido nesse traje,
sabia que os amigos iam ficar mangando de
mim.
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