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quinta-feira, 23 de junho de 2016



Lançador de Fundo de Panela



                             Cyro de Mattos





Depois que fui ao cemitério e vi a cara da morte, no outro dia fiquei em casa. Não tinha vontade de sair para brincar com os amigos. Era tempo de férias de fim de ano, o sol de verão acendia todas as coisas lá fora, convidando os meninos para as brincadeiras costumeiras. Como jogar bola no campinho da beira-rio, roubar fruta madura nos quintais espalhados na cidade, pescar e tomar banho no rio.
Mas a cena daquela mulher passando a mão na cabeça do marido morto no caixão, lá no cemitério,  não saía de dentro de mim. O choro dela  permanecia nos meus ouvidos. Sentia que uma tristeza tomava conta de mim como nunca havia acontecido, impedindo que eu fosse brincar com os amigos lá fora  na manhã ensolarada. 
 Minha mãe perguntou  o que era que estava se passando comigo, pois em qualquer dia das férias eu não costumava ficar dentro de casa. Andava pelo mundo com o punhado de amigos queridos, divertindo-me nas aventuras que a vida oferecia na manhã pura com o céu de nuvens como flocos de algodão. Respondia que não estava acontecendo nada, apenas tinha amanhecido sem querer ir brincar com os amigos, com um enjôo diferente  na barriga,  que me tirava  até a vontade de fazer a refeição da manhã. Aquilo ia passar logo.
Com a falta de apetite, mal cheguei a tomar a xícara de café com leite e comer uma pequena fatia do requeijão. Deixei de lado o pãozinho quente, a batata doce cozida, nem quis ver  o bolo de aipim, iguaria que mais gostava. Não dispensava esse tipo de bolo quando mamãe de vez em quando fazia para acompanhar a refeição matinal.
Fiquei em casa mais dois dias, sem coragem para andar solto na vida lá fora, sob o sol do verão. Tinha nojo de tudo. Dava vontade de vomitar. Apressado ia até o banheiro. Metia o dedo na garganta, vomitava, mas  não conseguia tirar aquela coisa visguenta  que só incomodava lá dentro de mim.  Tentava afastar para longe aquela sensação misturada com   terra e defunto  deixada pela morte,  desde que visitei o cemitério pela primeira vez para ver uma pessoa ser enterrada.
Escutei minha mãe  dizer na cozinha para a empregada que aquela falta de apetite e nojo das coisas que eu estava tendo era por causa das lombrigas que deviam estar comendo minhas tripas. Já estava na hora de eu tomar o remédio de óleo de rícino para botar as lombrigas para fora da barriga. Aí  fiquei alarmado, senti que não podia ficar mais em casa dando a entender à minha mãe que minha falta de apetite era por causa das lombrigas na barriga. Tratei logo de arranjar disposição para ir brincar com os amigos em qualquer canto da cidade.
Então, no terceiro dia depois que tinha conhecido o cemitério e visto  o homem ser enterrado, saí de manso lá de casa,  sem que a mãe percebesse. Fui  encontrar com os amigos na Praça Camacã, onde havia o campinho de futebol junto a uma das margens do rio. Como sempre fui de  calção de mescla azul, , camisa aberta no peito, pé no chão. Quando comecei a pisar o chão barrento da praça, desviando das poças de lama deixadas pela chuva que caiu à noite, vi por  fora da terra uma parte  do  fundo esmaltado  da panela, a outra estava enterrada. Apressado, peguei um pedaço de ferro que encontrei ali mesmo,  enfiei na terra, fazendo força para  desenterrar a outra parte do fundo da panela. Fiz tanta força, que parecia que eu ia romper alguma veia do pescoço. Fiz isso várias vezes. Até que enterrei o pedaço de ferro mais fundo e consegui  desenterrar o fundo da panela.
Tive  aquela alegria forte  quando finalmente desenterrei o fundo da panela, que nem lhe conto. Aí comecei a lançar o fundo da panela para o alto e acompanhar seu giro como se fosse um disco ligeiro atravessando as camadas transparentes  do ar,  brilhando na manhã de sol esplêndido.Várias vezes lancei  para o alto, tentando fazer com que o fundo da panela chegasse cada vez mais longe, como uma vez vi um menino fazer no areal deixado pela cheia do rio Cachoeira. O apelido do menino  era Bigodinho porque já estava começando a aparecer nele uma sombra no lábio superior, o que lhe dava um ar de orgulho. Ele gostava de dizer aos outros meninos que por causa daquele risco escuro  ali no lábio superior já estava ficando homem. Claro que ele era maior do que eu. Mas tinha confiança em mim. Embora menor do que ele,  aquela brincadeira de lançar fundo de panela para o alto também sabia fazer. Era só aparecer  a primeira oportunidade.
Esperava que daquela vez o fundo da panela fosse  subir mais alto. Quando o lancei como um disco bem  para  o alto, com todas as forças que pude reunir, mal tive tempo de olhar ele atravessar célere o espaço de cima, brilhando como um espelho na manhã com seus raios de sol que flechavam a terra. Voltou mais célere ainda do que quando foi lançado e desceu como se quisesse me atingir. Tudo foi bem rápido. Senti o corpo balançar quando ele me atingiu na testa. O sangue desceu pelo rosto,  cambaleei e caí. Botei a boca no mundo, chamando por minha mãe. Não conseguia me levantar. Rolava na terra úmida. Gritava que não queria morrer.  
            Soube depois que seu Isaías, que tinha uma oficina para consertar bicicleta no beco perto da padaria,  foi quem me levou nos seus braços cabeludos para minha  casa. Quando acordei, escutei a empregada dizer que cheguei desmaiado, a cara toda melada de sangue. Minha mãe  prometeu que se eu escapasse daquela, ia  fazer uma promessa para São Francisco.
Felizmente não era daquela vez que ia morrer. Ainda meio tonto, abri os olhos com dificuldade e vi o médico limpando com o algodão embebido no iodo  o sangue que escorria do talho na testa. Deu doze pontos para fechar o talho na testa. Cobriu-o depois com gaze e esparadrapo. Aplicou-me uma injeção oleosa para combater o tétano. Senti uma dor terrível quando o líquido da injeção  penetrou minhas carnes, mas daquela vez não chorei, não urinei nem borrei as calças.
           Prometi à minha mãe que nunca mais ia jogar fundo de panela para o alto, só porque queria fazer o mesmo  que menino maior do que eu sabia fazer. Pedi que ela não fizesse a promessa a São Francisco porque tinha sido salvo pelo santo, como ela acreditava. Não queria  vestir aquela roupa igual a de um frade franciscano, parecendo mais um vestido folgado  de mulher. O cordão grosso amarrado em volta da barriga, crucifixo grande de madeira no peito,  pendendo na corrente. Vestido nesse traje, sabia que  os amigos iam ficar mangando de mim.








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