O
Grande Chefe
Cyro de Mattos
Cada
menino tinha um apelido na turma Havia Gasolina, Peito de Pombo, Vigário,
Piroca, Lorota, Balaio, Porroló, Alfinete, Catroca, Caneta, Fininho e Pixote.
Cada um desses apelidos soava com o seu acento poético. Cada menino ficava como
chefe da turma por uma semana ou um mês. Natural que fosse o escolhido aquele
que se mostrasse mais corajoso e esperto para superar os desafios em cada
aventura.
As aventuras consistiam em roubar fruta madura
nos quintais das casas espalhados na cidade, caçar passarinho com estilingue no
jardim da Prefeitura ou nas roças próximas, pescar de rede no rio e jogar bola
no campinho da beira-rio quando então se enfrentava times de meninos de outras
ruas. Na verdade, as aventuras não passavam de brincadeiras alegres, nas quais
ninguém queria deixar de participar. Nas aventuras havia uma regra a que todos deviam obedecer até as últimas
conseqüências: um por todos, todos por um. Quem não obedecesse estava fora da
turma para sempre, considerado um imprestável, uma porqueira de amigo.
Para se tornar chefe durante um
mês era preciso vencer uma prova difícil.
Por exemplo, ficar andando mais tempo no muro do quintal da casa do
delegado, sabendo que, se caísse no lado de lá, ia ser abocanhado pelo cachorro
Nero, uma fera, quase do tamanho de uma onça. Outra prova era atravessar o rio
a nado. Quem chegasse primeiro ao outro lado do rio seria eleito para chefiar a
turma durante um mês.
O chefe, entre outras coisas,
ditava as aventuras de que a turma devia participar a cada dia. Roubar pedaço
de carne charqueada pendurada no cavalete dos armazéns de portas largas, na rua
do comércio, era uma das preferidas pela turma. O pedaço da carne charqueada
devia ser cortado com canivete, e rápido. Depois era repartido entre os que
participassem da aventura. O chefe até podia ficar fora das aventuras, se
quisesse, mas ganhava sempre o pedaço maior do bolo. Daí o interesse de cada um
em querer ficar como chefe da turma durante um mês.
Daquela vez o desafio a ser enfrentado para
que fosse escolhido o chefe da turma durante um mês não era perigoso, mas nada
agradável, não cheirava bem. Ninguém
sabia dizer direito de quem partiu a idéia. Era para ser provado numa colher de
chá o gosto que tem a bosta da galinha. Isso mesmo, aquela pasta mole e
repelente. Quem engolisse primeiro o petisco seria o vencedor e, claro, o chefe
por um mês. Teve menino que torceu o nariz, mas topou encarar o desafio para
não fazer feio. Havia um prazer especial em ser o chefe da turma durante trinta
dias. Valia a pena superar qualquer obstáculo.
A mãe de Piroca mantinha um criatório
de galinhas poedeiras no quintal. No outro dia,
lá estava a turma no quintal da casa dele. Havia chegado o momento para
enfrentar o desafio do que se tinha combinado. Ninguém teve coragem de olhar
para aquela coisa que causava repulsa quando se pensava nela. O impasse criado
pelo desafio da prova a ser encarado dava a entender que daquela vez a turma ia
ficar sem chefe durante um mês. Ninguém se aventurava agora em provar a
apetitosa iguaria. Tudo indicava aos pequenos corações que voltariam ao lugar
comum pelo qual a chefia da turma seria exercida apenas por uma semana, com o
chefe sendo escolhido pela maioria numa votação democrática. Bom adiantar que a
situação de chefiar a turma por uma semana estava ficando sem graça, já que o
escolhido para isso não gozava das regalias do chefe que comandava por um mês,
como ficou dito.
E, quando todos já tinham desistido
de enfrentar aquele desafio tão difícil, não era nada agradável provar uma
coisa que ia causar vômito quando fosse descendo pela garganta, de repente surgiu uma voz do meio da turma. Uma voz arrelienta, bem conhecida de todos.
- Eu topo – disse Pixote.
Aí, sem hesitar, ele tirou do bolso
a colher de chá e encheu com um bocadinho daquela pasta que a galinha pedrês de
pescoço pelado havia acabado de soltar no canto do quintal. Engoliu o troço de
uma só vez, sem fazer careta, não sentindo nada. Ninguém queria acreditar no
que acabava de acontecer ali mesmo diante dos rostos sérios. Logo ele, o menor
da turma, só fazia atrapalhar, era admitido nas aventuras porque era o dono da
bola de couro, que ele emprestava para as peladas no campo esburacado da praça,
que ficava em frente da cadeia. Logo Pixote, uma coisa insignificante, um
graveto que ninguém dava qualquer crédito.
Pixote nunca havia sido chefe da
turma uma vez sequer, nem por um dia, quanto mais por um mês, e era o que mais
desejava na vida. Reinaria agora por um mês, tendo o direito às regalias que só
ao chefe pertenciam. Ele, Pixote, o grande chefe, como de peito estufado
gostava de ouvir ser chamado quando começou a dar as ordens para que as tarefas
fossem cumpridas pelos seus comandados.
Foi assim que
Pixote tornou-se nosso grande chefe na turma de meninos que moravam na Rua do
Quartel Velho. Durante um mês. Certos andam os mais velhos quando dizem que com
menino esperto, corajoso e renitente até o cão mais feroz tem respeito, fugindo
o mais rápido dele.
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