Antônio Torres e Seu Querido Canibal
Cyro de Mattos
Antes da chegada do branco europeu por aqui, os nativos eram os donos desse Brasil imenso. Exerciam um ritual próprio de vida, que aprenderam dos
antepassados. Viviam na tribo, cercados pela natureza intacta. Viviam em liberdade na Baía de Guanabara ou
em qualquer praia do Rio de Janeiro, no século XVI, como de resto no vasto território brasileiro. Na paisagem natural da
Baía de Guanabara, as mulheres banhavam-se no rio Carioca, preparavam uma bebida com o milho ou a mandioca, o cauim, que a tribo apreciava. Como os donos
da terra e das águas, caçavam e
pescavam. Viviam em comunhão com a natureza, daí serem vistos no início pelo branco invasor como o modelo
do bom homem em seu estado selvagem.
Em outro
momento foram observados como objeto de dupla finalidade da colonização europeia.
O europeu colonizador queria tirar proveito econômico do estado selvagem do
índio, aproveitando-o como mão de obra
gratuita e necessária, enquanto a catequese desejava fazê-lo como o novo habitante do reino cristão, libertando-o do paganismo. O
índio servia assim como elemento de observação por gente que vinha de mares
nunca antes navegados e de crítica no campo literário.
Na sua famosa Carta de Achamento, o escrivão Pero
Vaz Caminha inicia toda a série de crônicas e de
literatura descritiva, tendo como abordagem um
Brasil nascente em estado primitivo.
Esse primeiro encontro através do
escrivão luso e os nativos informa sobre uma gente de boa aparência,
mansa e atraente na sua pureza para a
conversão. Ao escrivão da esquadra de
Pedro Álvares Cabral, seguiram-se outros cronistas tratando do assunto com material mais amplo, e,
entre eles, Gabriel Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo, Pero Lopes de Sousa e Hans Staden.
O tema do índio em Meu
querido canibal (2000), de Antonio Torres, tem novo significado e representatividade romanesca na
literatura brasileira. Se bem que em outro contexto, o texto que resulta
deste romancista consagrado, moderno, de
técnica modelar, pende para o herói derrotado, e, nessa
constatação, em que impera a linguagem acessível para delinear a crônica no espaço do descaso histórico com
o drama e a tragédia dos nativos, mostra o índio como uma criatura sem saída
em sua heróica atitude guerreira,
transformadora de sua comunhão
com a natureza. Opera como
um dos elementos de uma nova concepção de civilização, que resiste ao
conquistador, mas que termina por ser exterminado.
Em José de Alencar, as qualidades do
nosso primeiro habitante são idealizadas
e executadas como compensação. Elege-se a exaltação romântica das virtudes individuais e sociais, os
sentimentos de orgulho, lealdade, amor à liberdade, valentia, que o transformam no herói
nacional, moldado assim com caracteres próprios, distantes das adaptações
europeias.
Com Adonias Filho, o assunto lembra
até certo ponto o índio de José de Alencar no
que diz respeito ao tratamento digno que lhe é conferido, embora as visões sobre o mesmo tema se afastem no plano da elaboração e execução
ficcionais do mundo porque nascidas em épocas diferentes, contextos distantes,
ajustando-se cada uma delas às suas
peculiaridades e metas. No indianismo adoniano, o herói trágico mostra-se na trama vinculada
à selva, na infância da região cacaueira
baiana, penetrada por forças obsessivas
do destino, como elemento da ação ou que impulsiona o episódio. As
determinantes coincidentes do
naturalismo situam esse herói à maneira de um percurso imutável, em que
o trágico fixa suas garras de horror e infortúnio, tendo como proposta final a
catarse, que chega impregnada do alívio. Ou encontra saída na ressurreição,
naquela dimensão que não é desta vida.
Em Antonio Torres, a personalidade do índio Cunhambepe se faz
conhecer através de própria conduta
marcada no gesto primitivo, entre a
naturalidade da existência e a oposição ante o invasor europeu. Os nativos são vistos pelo autor através de observações sensatas, pesquisa ampla nos estudiosos do assunto, em documentos,
revistas e jornais. A essência dessa
personalidade do nativo chega de zonas
críticas, que se vai formando nas lembranças do rito, rastros da desgraça, nas vozes do embuste e da farsa
histórica, na repercussão do som e da fúria, que, vinda do passado,
está como vestígios no presente.
Desde a estreia em
1972, com o romance Um cão
uivando para a Lua, o baiano Antônio Tores chamou a atenção da crítica e
leitores do melhor ambiente literário
como um romancista que chegava para
ficar com destaque no corpo das letras brasileiras contemporâneas. O
consagrado romancista, que nasceu no povoado do Junco, atual município
de Sátiro Dias, na Bahia, no início foi jornalista em São Paulo. Ao longo de sua carreira
literária, produziu, entre outros, os
romances Os homens dos pés redondos ( 1973), Essa Terra (1976), Balada da infância perdida ( 1986), Um táxi para Viena d’Áustria (1991), O cachorro e o lobo
(1997) e Meu querido canibal ((2000).
Seus livros têm freqüentes reedições.
Um deles, Meu querido canibal ,
já alcança a décima segunda edição.
Nestes tempos velozes da tecnologia,
apetência constante dos meios eletrônicos, primazia da imagem visual,
em que se propala que o romance impresso tem seus dias contados, o caso de
Antonio Torres desdiz a afirmativa das
posições unilaterais, precipitadas. É o
testemunho de que não é bem assim. Muda-se o suporte do livro, mas o romance
impresso, de boas qualidades literárias,
visibilidade, densidade, rapidez, como quer Italo Calvino, precisão no
que pretende dizer, linguagem acessível,
sem ser vulgar, conteúdo rico, imaginário esplêndido, continua vivo.
Em Meu querido canibal, numa sacada inteligente, Antonio Torres reinventa-se em
escritor-cronista moderno para, de peito aberto, como um neorromântico,
mostrar-se indignado com a memória de um herói verdadeiro, perdido no tempo, “mesmo tendo demarcado um
território e inscrito nele a sua legenda”.
No capítulo 2, alerta que esse herói, de nome Cunhambepe, que quer
dizer homem de fala mansa, era um guerreiro. Situado no tempo da pedra
polida, viveu numa região paradisíaca batizada de Rio de Janeiro. Pertencia à
nação tupinambá, que significa Filho do Pai Supremo, povo de Deus, oriunda do grande tronco tupi-guarani.
A leitura desse romance em que, desprovido do tom panfletário, gratuito
e irresponsável, denuncia o extermínio
do índio brasileiro, eram cerca de seis milhões quando por aqui aportou o
português aventureiro, ávido de riquezas, tendo como abono os jesuítas, melhor
dizendo, a espada numa mão e a cruz na outra, permite, sem esforço, considerar
que Cunhambepe é o primeiro herói de um país cujos rastros terríveis vieram das
pegadas truculentas de aventureiros,
degredados, traficantes, corsários,
contrabandistas e corruptos.
Fácil perceber que a história de
Cunhambepe não é do edênico bom selvagem, dono das selvas e das águas, dos sonhos advindos da natureza em estado
puro, vivendo nu como quando se vem ao mundo, na era da pedra lascada, contemplando-a e tentando adivinhá-la nos
seus profundos e assombrosos
mistérios. Não é a do herói dos
brancos e traidor dos índios. É a de quem estava do lado de seu povo, levando-o
a lutar até o último gemido, porque era
melhor sucumbir do que ser submisso ao
invasor escravagista. Nisso residia o sentido de quem estava numa guerra
estupidamente desigual, entre o canhão avassalador do branco europeu e a flecha banida da taba para rolar na mancha das águas, que
envergonha. .
Com sua biografia restrita a referências mínimas, sua história reduzida a poucas linhas, mesmo
assim entregue ao sabor das traças, esse
querido canibal herói encontra em Antonio Torres uma reconstituição brava e
eficaz resultante da motivação digna do
imaginário e da transpiração eficiente na escrita comprometida com a verdade. Colhida e corrigida esta em estudiosos do assunto, tantas vezes
equivocados, quando dotados de preconceito
e superficialidade omitem a figura nativa na galeria dos heróis
autênticos da história desse país, porque em
conluio com o embuste no
tratamento oficial do tema.
Adorável canibal, esse guerreiro, herói verdadeiro, encontrado por Antonio Torres para o bem da
literatura brasileira, retirado da
nebulosa de nossa história com traços
firmes na escrita ágil e atraente.
REFERÊNCIAS
TORRES,
Antônio. Meu querido canibal, Editora
Record, Rio, 2016.
ALMEIDA,
José Maurício de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Editora Achiamé, Rio de janeiro,
1981.
CÂNDIDO,
Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins
Editora, 1964, segundo volume.
MATTOS,
Cyro de. As criações de Adonias Filho,
Publicações da Academia Brasileira de Letras, Rio, 2017.
SODRÉ,
Nelson Werneck. História da literatura brasileira. José Olympio Editora, Rio, 1960.
*Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta,
romancista, organizador de antologia,
autor de livros para crianças e jovens. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa
Cruz. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em
Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Dinamarca. Conquistou o Prêmio
Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio
Nacional Pen Clube do Brasil.
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