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sábado, 25 de abril de 2020





              A Musa Mansa de Conceição Nunes Brook  
                                    
                                     Cyro de Mattos

                Filha do pecuarista Isaac Nunes e Dona Rosalva, Conceição Nunes Brook         
 (1943-1990)   nasceu em Ibicaraí onde  viveu a infância, preenchida de brincadeiras e coisas naturais na música da inocência.   Mudou-se para Salvador onde  a moça de beleza radiante foi eleita Miss Glamour Girl.  Quando  morou no Rio mais tarde foi  estudante da PUC.  Casada com um norte-americano,  de quem teve três filhos , mudou-se para os Estados Unidos.
           Sempre se sentiu estranha nos Estados Unidos, a  alma com seus bemóis líricos em compasso brasileiro  não aceitava os sons  de uma paisagem  humana  distante, permeada de cenas diferentes. Pouco lhe dizia no íntimo,  que pulsava no Brasil.  Era ave presa na solidão dos vazios,   sem plumagem ,  nem  bondoso canto   nos caminhos da indiferença.   Tornou-se uma criatura estranha, sem ajuste no cenário que não lhe dizia respeito,  sem conexão da alma,  a   motivar  o disfarce onde não havia tempo para renascer.  Era natural que o tempo fosse parado, “todo o ser disperso com medo do amanhã.”
            Avistava Nova York sem as substâncias que correm nas veias, vindas da infância e das lembranças fraternas,    que viravam agora a mulher sozinha  na difícil arte de camuflar. Via  Nova York como serpente traiçoeira, de bote armado na esquina,  a que fere, queima e cega,  tritura  e devora “inocentes e deslumbrados mortais.”  Separada do marido, voltou ao Brasil, vindo a falecer  anos  depois,  vítima de doença cancerígena.
          Publicou dois livros de poesia, Teu rosto de bem-me-quer, pela Editora Itapuã, Salvador, 1978,  e Me basta uma janela,  Editora Record, Rio de Janeiro, 1984, com o desenho da capa e ilustrações internas do  consagrado Carlos Bastos.  Chama  a atenção   que poeta desconhecido, jovem,  sem convívio  na ambiência literária da época, em Salvador e no Rio, tenha conseguido a proeza  de ter publicado seu segundo livro de poesia  por uma editora importante,  de circulação nacional, sediada na metrópole carioca. Naquela época Rio e São Paulo funcionavam como tambores culturais do Brasil. E até hoje com um lirismo valioso,  em forma de carícia,  embora de legado pequeno, continue sua poesia nem sequer referenciada com o   seu nome  no dicionário de autores baianos, nem em antologias da poesia na região sul baiana.
       Há poetas que fazem da vida uma canção de versos mansos, na qual  a inspiração reveste-se de ternura,  pulsa na transpiração leve  até nos  momentos difíceis. A poesia de Conceição Nunes Brook é  dessa natureza  doce, de tristeza bondosa, tecida com os fios do sonho que se abriga na palavra terna para falar da vida com suas falhas.  Risca  o instante no eterno  tocado de partituras  sentimentais,  que pulsam  antigas e batem no agora ferido. 
       Um dos poemas  belos do livro, “Lamento da Esposa Esquecida”, versos que soam como gemidos do vento,  que fere e não tem volta,  a poeta diz do  marido ausente, a quem gostaria de falar , como o ar que entra pela fresta. Lembrar “do ritmo manso da respiração do nosso filho a dormir” e mais, que ele visse “as duas borboletas tênues  que há pouco pousaram  em minha janela  e voaram juntas num amor  fugaz e eterno, pois são curtas as suas vidas”.
        Longe de ser uma poesia hermética,  mas figurativa em sua estética definida  com clareza,  apoiada em unidades  rítmicas leves,   Conceição Nunes Brook faz  de cada poema uma música, um leve sentido, tocado pela vida transformada no mais belo sonho. No encanto envolve com  seus  dizeres reveladores de segredos,  angústia,   confissões tristes,   impressões alimentadas de esperança,  como se fosse seu propósito final  guardar  esse transe transmitido pela musa mansa  no coração como um manual de delicadeza perfeito.  Até quando  aparece em momento grave , a vida sobreposta na areia dos caminhos  passageiros,  emerge de uma luz,   que leve e distante  esquecerá de quem se foi, mas apesar disso se conserva como suave nesta distância da alma.
        Ante a certeza que a vida é falha,  limitada, contraditória, a gerar o medo e o amor,  ruídos comuns da solidão,  imperfeições das   ausências que não se explicam, essa poesia se basta quando enxerga  a vida através de uma janela. É desta janela que  reparte os sentimentos,  captura temas e momentos de  acordes graves.  Para ler o que  enxerga com o coração, em  suas circunstâncias, basta essa janela aberta no imaginário,   que aflora de dentro de si como densa e pungente fantasia.
       Dessa janela é que avista a vida a galopar em ágeis montarias no jóquei, o vermelho das flores nos galhos de esplêndido dia,  o Cristo  de braços abertos para os espantos filtrados em máquinas fotográficas, a lembrança das vacas mansas e brancas a ruminar o tempo em    mansidão nos  campos verdes  da fazenda paterna. Ali, nesta janela, sabe a sonho  e choro como momentos essenciais da existência,  ternuras e decepções inevitáveis,  que deixam no final a harmonia perfeita do poema merecido.
       Leitora constante de Manuel Bandeira,  Cecília Meireles,  Cesário Verde, Shakespeare e Walt Whitman, mostra-se em algumas epígrafes no poema  nessa boa companhia. Cônscia de que, como Ann M. Lindberg,  somos todos ilhas em um mar comum, essa baiana de Ibicaraí diz no verso  as coisas mais simples e menos intencionais, pois nela  o frágil é forte, alimenta-se da verde esperança.
          Sua poesia é necessidade vital, como  dormir, comer, sonhar, habita o tempo intervalar  entre viver e morrer.  Sempre mirando essa flor com desvelo,  impressa no chão de bondade triste, a poeta diz no poema “Inevitável” sobre  sua crença:

Uns morrem de amor
Eu faço poesia
Uns marcham em protesto
Meu lema é a poesia
Uns se suicidam
Ou são homicidas
Meu ópio é a poesia
Uns se desesperam
Meu grito é a poesia
Uns morrem no exílio
Meu país é a poesia
Uns dão volta ao mundo
Meu barco é a poesia
Uns trancam-se mudos
Meu silêncio é a poesia
Uns,   danças e festas
Meu canto é a poesia
Uns ganham medalhas
Meu prêmio é a poesia
Ou são condenados
Minha pena é a poesia
Uns pedem socorro
Meu amparo é a poesia,
Uns querem resposta
Quanto a mim:
Me basta a poesia.

             Sobre o  livro Teu rosto de bem-me-quer, Jorge Amado opinou:
                     “Li seus poemas, poesia sensível  e dramática, com duas vertentes que aparentemente se chocam; em realidade completam-se dando-nos a verdade inteira do poeta.
                 “De um lado o verso simples, comunicativo, uma alegria de infância, uma cantiga de amigo; do outro lado,  num ritmo mais torturado, o abafado soluço de quem busca encontrar-se, mas não se entrega, não faz da poesia confissão pública, grito, pedido de socorro... apenas como interrogação dolorosa. Das duas vertentes, surge a poesia de densa emoção e de real beleza.”
          Conceição Nunes  Brook faleceu em 14 de dezembro de 1990.



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