Um Mestre da Crônica Esquecido
Cyro de Mattos
De origem grega, a palavra crônica vem de chronos, que quer dizer tempo. Forma textual de narrativa curta, possui uma
inclinação para os fatos da vida diária,
contemporâneos. Escrita para o jornal ou revista, televisão ou rádio, o estofo
literário retira-lhe a condição estrita de jornalismo, cuja linguagem é
objetiva para informar o fato. Conciso e útil,
o jornalismo pretende aproximar
do evento os seres humanos com a
linguagem precisa, onde quer que estejam,
para que tomem conhecimento do
que acontece no mundo, enquanto a crônica ameniza a notícia ou o evento levado
ao leitor sobre a vida diária.
Na crônica de humor, o autor faz graça com o cotidiano. Na crônica ensaio, o cronista tece crítica ao que
acontece no sistema organizado, detectando falhas nas relações sociais e de
poder. Na crônica filosófica logra extrair do cotidiano reflexões sábias
a partir de um fato. Na jornalística enfoca aspectos particulares de
notícias ou fatos, que podem acontecer na área esportiva, policial e política
ou em outros campos da atuação humana.
Pode ser atemporal, se o
assunto, extraído da realidade
exterior sob bases sentimentais,
revestir-se de arcabouço literário, servindo para ser lido tempos
depois desgarrado do seu contexto e ainda assim causando emoção. Sempre dando
tratamento agradável ao assunto em
que está descrevendo, a crônica
é de tal forma argumentativa ou digressiva nos devaneios dos sentimentos. Seu
lirismo poetiza a vida, aviva o evento
com graça, tornando-o ameno pelo eu
que o recorda no relógio do peito.
A crônica atingiu o ápice na Idade Média quando passou a registrar uma série de acontecimentos e a obedecer uma sequência linear. Nessa época era destituída de qualquer interpretação nas
informações de natureza histórica. Com a significação dos fatos em fase moderna
entrou em uso no século XIX , passando a
designar textos que, embora remotamente se ligam à forma originária, revestem-se de tratamento literário para
tornar o assunto menos insípido e fugaz.
Em nossas letras, Machado de
Assis, no século XIX, com engenho e arte encontrou os meios necessários para lhe dar
expressividade.
A crônica no seu arcabouço de escrita
híbrida, entre o jornal e o literário, não apresenta limites muito definidos.
Sujeita ao efêmero que passa ante o
eterno que fica, o espaço que melhor
achou para morar e se expandir
foi o jornal, lugar em que demonstra
leveza na informação do fato e corresponde ao que os ingleses chamam de commentary, sketch, light essay, literary column, human interest stor.. Usa a oralidade na fala dos personagens e o
coloquial na escrita, a linguagem é
simples, alguns querem que seja
como poesia espontânea em forma de prosa.
A crítica não aceita a crônica como uma
expressão literária significativa, se comparada ao romance, à poesia e ao
conto. Nenhuma literatura se faz grande
com livros de crônicas, alega-se. No Brasil, quando se fala em cronistas de
primeira grandeza soam com aplausos os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino,
Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Henrique Pongeti, Stanislaw Ponte
Preta, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Fernando
Veríssimo.
No elenco formado por esses cronistas
de primeira qualidade poderia figurar o
baiano (de Ilhéus) Fernando Leite Mendes?
Como todo bom autor, ele escreveu um
sem-número de crônicas para todos os gostos com fina sensibilidade. Dariam, se
publicadas, vários volumes. Ficaram
esparsas, esquecidas, perdidas no baú do tempo. O único livro desse cronista
admirável, Os olhos azuis de D. Alina e
algumas crônicas (1985), hoje uma raridade
bibliográfica, foi publicado
postumamente, graças à iniciativa do sobrinho Gumercindo Leite Mendes. O volume
reúne cinqüenta crônicas, algumas antológicas, como “Os gatos” e
“Elogio do urubu”, a primeira
de humor e a segunda com sabor de prosa poética; “João da Verdura” e
“Adeus, Tamiroff”, crônicas, como de resto, além do cotidiano, de tão humanas, atingem o
universal, em seus tons carregados de subjetividade comovente. Apresentam-se pontuadas de ternura na
exposição do drama.
Jornalista de talento excepcional, de
Salvador seguiu Fernando Leite Mendes com sua vocação para o Rio onde, nos anos em que residiu na
metrópole, nunca esqueceu as raízes baianas, sintonizadas em Ilhéus e Salvador. Em terras cariocas, no seu voo de homem inteligente, se impôs como editor, redator e cronista
dos principais veículos da imprensa.
Lúcido, esteve presente em
algumas colunas importantes que assinou: “O homem da rua”, “ A poesia do
asfalto”, “Sextas-feiras estórias”. Foi editor
político do jornal “Última Hora”,
redator da “Revista da Semana”
e do “Consórcio Time-Life”, exímio
editorialista do “ Diário de Notícias” e do
“Correio da Manhã”, redator-chefe do “Diário Carioca”. A notícia
informada por ele estava em boas mãos.
Intensamente humano,
autêntico lírico que gostava de
expressar o lado encantador da vida,
como mostra em várias passagens de “Os olhos azuis de D. Alina”; com a alma triste pelo que percebeu
na figura de Jacinto de Gouveia, um tocador de piano no cabaré de
Ilhéus, que fumava cachimbo inglês e usava cachecol, na cidade atlântica de
clima tropical, vivendo pobremente, e
que, na última vez que viu o cronista,
pediu-lhe que trouxesse do Rio a partitura do poema sinfônico Finlândia,
de Sibelius; irônico como pede o assunto em Um comedor de vidro”; alegre com os
lances aguerridos da pelada, vista da
janela, quando então se revoltou com o
adulto que quis interrompê-la, depois
aceitou o convite dos meninos e foi
pegar no gol.
Com uma capacidade de
falar de modo simples e, ao mesmo tempo, sedutor e culto, de gesto solidário e
terno, o tempo não quis que esse
amanuense da palavra vivesse mais anos
aqui entre os humanos. Foi-se embora aos
48 anos. Tivesse mais tempo para esbanjar seu talento verbal, certamente teria posto numa festa demorada da vida mais riso,
fraternidade, esperança e sonho, companhias necessárias, ontem como hoje.
Haveria mais leitura desses momentos fotográficos que ele registrou no teclado da
sua máquina portátil Remington,
levada para ser usada onde estivesse, em Hong Kong ou Paris. Mais escuta
sensível dos seres humanos haveria,
graças a um senhor gordo, com alma de menino, um relógio de cordas suaves no
peito, cujos ponteiros costumavam marcar como poesia os passos da existência. Mais divulgado, em seu
brinquedo preferido, a crônica, ensejaria
minutos de delícia às novas gerações.
*MENDES, Fernando Leite. Os olhos azuis de D. Alina e outras
crônicas, Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1985.
**Cyro de Mattos é ficcionista e
poeta. Também publicado em Portugal,
Itália, França, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Dinamarca e Rússia. Premiado
no Brasil, Portugal, Itália e México.
Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia).
Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e Pen Clube do Brasil. Advogado
aposentado. Jornalista com passagem na imprensa do Rio quando foi redator de O
Jornal, Jornal do Comércio, dos Diários Associados, Diário de Notícias,
Revistas Posto de Serviço e Brasileira
de Turismo, editadas por Sebastião Nery e Fernando Leite Mendes.
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