DESCAMINHOS. E DESRESPEITO A JOÃO
CABRAL
Ricardo
Cravo Albin
“O essencial é saber ver. Saber sem estar a pensar. Mas isso
(triste de nós que trazemos a alma vestida), isso exige um estudo profundo. Uma
aprendizagem de desaprender” (J. Cabral de Mello Neto).
Não, não pretendo abrir meus espantos de hoje para exibir,
mais uma vez, os descaminhos que a política externa do chanceler Ernesto Araújo
percorre. Todos os eleitores que amamos do Brasil nos condoemos com a barafunda em que o folclórico Ministro projetou
a Casa de Rio Branco.
Não, não quero me alongar sobre os disparatados jargões
ideológicos (“globalismo”, “ocidentalismo”, etc., que ninguém compreende o que
seja). Ou mesmo gírias das redes sociais (isentões???..., ninguém sabe o que é).
Não, sequer me animo a repudiar a pregação doutrinária que
absorve a antes credibilizada Fundação Alexandre de Gusmão, agora cenário de
delírios ideológicos de youtubers e twiteiros, instrumentos hoje de bajulações
incabidas do Chanceler ao Presidente.
Não, tampouco me atrevo a imaginar fazer retornar o agora
insepulto Barão do Rio Branco à austeridade de definidor das fronteiras do
Brasil, o que pude comprovar na Escola Superior de Guerra, quando o aclamamos
há poucos anos como um dos cinco inventores do Brasil.
Nossa possível sorte é que, acredito, tenha o Chefe da Nação um
possível núcleo pensante para o Brasil: uma elite de generais bem formados em
academias e até política externa (essa elite existe sim). Que poderá ajudar a
tirar este país dos gravíssimos erros diplomáticos do Itamaraty, uma arapuca, somente
admissíveis por gestões erráticas de Banana Republics, bem antiguinhas e
caricaturais dos anos 40.
O bisonho Chanceler parece não se dar conta de que o jogo
internacional praticado por adultos exige confidencialidade e artimanhas,
sutilezas e discrição. Até silêncios.
Finalmente não tenho sequer coragem de abordar a última (e
repelente) declaração pública do Chanceler – que parece usar fraldas e nunca ter
ouvido falar do que seja a solenidade de um fraque – de que não vê problema em
o Brasil se tornar pária internacional. Uma consequência imediata dos
descaminhos sofridos por suas maluquices contra os interesses nacionais nesses
últimos tempos. Embora ele será um pária sim. Mas a consagrada diplomacia
brasileira hoje em declínio, jamais.
Fico a refletir como meus antigos colegas da Escola Superior
de Guerra, inclusive intelectuais de procedências as mais diversas, estarão “a
se por escarlates de vergonha”, como apregoava Eça de Queiroz ao se referir à
asneiras cavalares de politiqueiros do século XIX.
Não, nada disso tudo esboçado acima, apenas esboçado, me
movimenta a desabafar aqui. O que me estimula a bramir indignação agora é o
desrespeito que Ernesto Araújo desferiu contra o poeta e diplomata João Cabral
de Mello Neto, ao discursar na formatura dos novos integrantes da diplomacia
pelo Instituto Rio Branco, que escolheram um dos mais altos brasileiros do
século XX como seu patrono, exatamente João Cabral, acusado de militante comunista
e inimigo do seu próprio país. Logo ele, a mais refinada flor de Pernambuco e
de seus sertões profundos. Até de climatista (?) e de iluminista (?) Cabral foi
batizado. Para incompreensão geral.
O insulto a um dos mais universais poetas do Brasil, tal como
seu colega e amigo Vinicius de Moraes, agora consagrado pela nova encíclica do
Papa Francisco, tirou os pés do meu chão. E me nocauteou, como a todos os
escritores do país. Porque, se Vinicius foi citado pelo “Samba da Benção”, João
Cabral poderia ser citado na mesma encíclica por “Morte e Vida Severina”, cujo
poema musicado por um Chico Buarque de 20 anos exala solidariedade e aflição
aos brasileiros despossuídos e com fome, em busca de um palmo de terra ao menos
para enterrar seus restos mortais.
O insulto, na verdade, atinge à toda nossa literatura mais
credenciada, estende-se a todas as gerações de diplomatas que se formaram pelo
Instituto Rio Branco, e culmina na grosseria aos jovens diplomatas que o
escolheram patrono da turma de 2020. Realço, contudo, que o exótico Chanceler
de Fraldas perpetrou supremo insulto ao se autointitular poeta, apenas para
desrespeitar João Cabral. Tudo, menos isso.
Eu fiquei amigo do escritor desde seu histórico depoimento
para o Museu da Imagem e do Som em 1967. E pude comprovar quando hóspede dele no
Consulado em Barcelona que Cabral andou a dois passos de ser Prêmio Nobel de
Literatura. Indicado que foi também pelo fortíssimo prestígio da Espanha de
Cervantes nos meios literários. Mas, em especial, por seus amigos-irmãos, os
pintores Juan Miró, Tápies, Juan Ponç, bem como seu grupo Avant-Garde Dau Al
Set, além do celebrado escritor catalão Juan Brossa.
“O amor comeu meu nome, meu retrato / O amor comeu meus
cartões de visita... / O amor comeu meus remédios, meu inverno, meu verão /
Comeu meus silêncios, minha dor de cabeça / O meu medo da morte...”. (J. Cabral
de Mello Neto).
Ricardo Cravo Albin é presidente do Pen Clube do Brasil,
crítico de música e cronista.
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