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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

 

Orlando Gomes: um jurista cronista

              Cyro de Mattos

 

         Os alunos gostavam de dizer de boca cheia, a expressão feliz no rosto, que aquela era a gloriosa Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. O prédio ficava na Rua Direita da Piedade, em frente, no diminuto largo, o gesto em bronze do jurista Teixeira de Freitas, a observar os alunos que entravam para a aula na manhã. Os professores eram senhores de vasto saber jurídico. Uns faziam que os alunos respeitassem aquela faculdade de tradição valorosa, outros com a sua maneira de dizer o direito que a amassem. Entre eles, havia Orlando Gomes, professor de Direito Civil. Era um autor respeitável no circuito nacional, à época publicara obras de Direito Civil, que sobressaíam de sua vocação entre os talentosos juristas baianos.       

O curso de Direito Civil durava quatro anos.  Para cada ano era estudada uma das ramificações desse direito. Não havia aluno que não quisesse estudar Direito Civil com o professor Orlando Gomes durante os quatro anos. Era uma dádiva ser aluno daquele professor elegante, dicção objetiva, poder de síntese e densidade atraentes. Fazia sem esforço que as aulas se tornassem sedutoras, durante o ano ninguém pensava em faltar a uma delas, lamentando quando isso acontecia por motivo alheio à vontade.    

A razão do moço que veio do interior logo tomou conhecimento que o Direito é uma das maiores conquistas do ser humano. Sem essa hora não existe de fato gente humanizada, o cidadão condigno, mas o regresso na escala biológica onde prevalece o instinto animal na prática invariável dos atos com base na lei do mais forte.

          Havia chegado a hora do professor de Direito Civil se aposentar, guardar suas ferramentas de ensino na gloriosa faculdade. E assim, no veraneio imposto pela passagem da vida, viria acontecer o cronista. De crônica em crônica, publicada no “Jornal da Bahia”, nos anos 1960 e 1970, o estilo não jurídico do autor foi revelando um baiano bom cronista. O autor no final da sua atividade como cronista alcançava a marca de quem havia escrito 140 textos do gênero.

         Crônicas sobre o seu amor à Bahia, a sua história, os seus velhos mestres, o Carnaval ontem e hoje, o racismo, o futebol, a oratória decadente do bolodório, os advogados, a Justiça e o Direito, entre tantas que fluem no estilo sóbrio.  Em algumas fica claro que os homens da geração do cronista tinham dificuldades de entender o mundo, que passava ligeiro, por mais aberto que seja o espírito, mais ansiosa a vontade de compreendê-lo, como pasmo se dizia. 

Essas crônicas foram reunidas agora no alentado volume Orlando Gomes, o cronista. Percebe-se em algumas que o tempo passageiro é flagrado na Bahia com seu direito de sambar, caminhar por novas ruas do mundo onde foi introduzido o homem audiovisual modelado pela telecomunicação, formatado em seu psiquismo, educação e relações sociais. O cronista com conhecimento de causa toca as faces nostálgicas da velha Salvador, exibe a cidade que não mais existia com a pura alegria de viver de sua boa gente. Ninguém mais queria conhecer o outro por prazer.

Em “Papo de Folião Aposentado”, no tom consolador, conclui que o carnaval de ontem já era, o corso de automóveis com famílias aplaudindo nas calçadas não passava de evocação de cafonices. Estava convencido de que não foi mesmo o folião aposentado que mudou ao correr da vida. O babado, em seu cometa ululante e feérico, “atrás do qual centenas de foliões pulam por pular e arrastam o que encontram pela frente”, é que era outro.

Lírico, observador, reflexivo, opinativo. Cronista que recolhe os estados emotivos da vida em sociedade, extraindo das cenas cotidianas o pretexto que resulta no texto informativo com equilíbrio e devaneio.  Cultiva a crônica com o engenho de ensaísta, que inspirado fere com humor a mudança dos costumes, expede juízo acerca de temas como o amor, a idade avançada como virtude acumulada de saber, o preconceito contra as mulheres, a euforia das domésticas, a utilidade das novelas de televisão, as drogas e a violência. Crônicas para todos os gostos como resultado de uma experiência de vida bem vivida.  

À sombra das lembranças que acendem o pensamento emotivo, às vezes revelam   a maneira apropriada para se regressar ao passado, reconstruindo-o com pedaços felizes, momentos generosos da cidade de beleza antiga na canção da vida. Com uma conversa simples, pedem atenção para o perene das coisas, pessoas, costumes, situações, logrando trazer para as páginas do livro agora a notícia efêmera que pertence ao jornal.  

O cronista tem uma visão tranquila de ver o mundo. Distingue-se na escritura que prefere recriar com emoção e razão situações ao invés de recorrer à mera transcrição dos fatos. Assim, ainda que tardio, fez descansar o jurista de saber e ensino notáveis.  Gosta de se apresentar com humor, diverge quando a cena se lhe mostra inconsequente, mas sempre querendo conversar com o mundo, de maneira lúcida, serena, numa condição que lhe é necessária, faz parte de seu caráter revestido das essências da vida. Isso certamente fará com que o leitor comente que em bom momento não ficou o veranista esquecido dentro do jurista.

 

*Orlando Gomes, o cronista, 140 crônicas de Orlando Gomes, prefácio por Otávio Luiz Rodrigues Jr., organizador Rodrigo Moraes, EDUFBA, editora da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

 

**Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, ensaísta, cronista, autor de literatura infantojuvenil. Editado e premiado também no exterior. Autor de 55 livros pessoais. Membro da Academia de Letras da Bahia, foi aluno do professor Orlando Gomes, que ocupou a cadeira 16 da instituição.

 

 

 

 

 

 

 

 

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