Romance do acadêmico Jorge Amado
Cyro de Mattos
Roman à clef, ou roman a cle,
expressão francesa cuja tradução aproximada é "romance com chave",
designa a forma narrativa na qual o autor trata de pessoas reais por meio de
nomes fictícios. Roman à clef na literatura brasileira é Montanha
(1956), do mineiro Ciro dos Anjos, O espelho partido, de Marques
Rebelo, projetado para sete volumes, iniciado em 1959 com O trapicheiro, e
A conquista (1899), de Coelho Neto, que retrata a vida boêmia e
intelectual do Rio de Janeiro no final do século dezenove.
No romance de Coelho Neto informa-se
sobre a paisagem urbana em mudança do Rio de Janeiro, os costumes importados de
Paris, os padrões de comportamento ditados pelo espírito da belle époque,
a visão que se tem da literatura como o sorriso da sociedade. Nesse Rio de
Janeiro de estilo literário eclético, na qual se cruzam e entrecruzam a
estética do parnasianismo, simbolismo e impressionismo, circulam personagens
reais com os nomes fictícios. Alguns pseudônimos são evidentes no romance, como
Octávio Bivar representando Olavo Bilac, e outros não menos fácil na
identificação, como é o caso de Anselmo Ribas, que é identificado como se fosse
o próprio Coelho Neto.
Na literatura estrangeira, um roman
à clef clássico é a fábula de A revolução dos bichos, de
George Orwell, na qual não é difícil identificar no bestiário como personagens
fictícias pessoas da revolução soviética, que derrubou os padrões de um sistema
aristocrático e se tornou responsável pela implantação do regime comunista na
sociedade russa. Esse tipo de romance encontramos em Portugal com A
correspondência de Fradique Mendes (1900), de Eça de Queiroz, enquanto na
Alemanha A montanha mágica (1924), de Thomas Mann, é outro
exemplo de romance à clef.
Em Farda, fardão, camisola de
dormir, Jorge Amado recorre ao romance à clef para abordar as disputas
entre candidatos à vaga deixadas por falecimento de ilustre membro da Academia
brasileira de Letras e além
disso recriar o Estado Novo com seus
padrões ditatoriais. Sabe-se que no Estado Novo Jorge Amado foi perseguido e
preso, teve seus livros queimados em praça pública. Tempos depois, nos idos de
1961, ingressava na Academia Brasileira de Letras, confessando no seu discurso
de posse:
Chego à vossa ilustre
companhia com a tranquila
satisfação de ter sido
intransigente adversário desta
instituição naquela fase de
vida em que devemos ser,
necessária e
obrigatoriamente, contra o assentado e
o definitivo, quando a nossa
ânsia de construir encontra
a sua melhor aplicação na
tentativa de liquidar, sem dó
nem piedade, o que as gerações
anteriores conceberam
e construíram. (p. 9, Discursos,
1993)
Perguntado certa vez porque como um
escritor irreverente, vivendo a vida do povo, havia ingressado na Academia
Brasileira de Letras, uma instituição de elite, que preserva os valore
tradicionais e o ritual da solenidade com pompa, respondeu por duas razões: “O
ocupante da cadeira, Otávio Mangabeira, às vésperas de morrer, no hospital,
disse a Wilson Lins que gostaria de ser sucedido por mim... E pela pressão de
meus amigos acadêmicos.” (p. 32, Literatura comentada, 1981)
Esclareceu que já tinha sido convidado
pelos amigos, tendo recusado. Quando voltaram a fazer pressão, aceitou. Frisou
que só usou o fardão da Academia em poucas oportunidades, a primeira foi quando
tomou posse, depois ao receber o romancista Adonias Filho na Casa e por último
o dramaturgo Dias Gomes.
Jorge Amado ocupou na Academia a
cadeira 23 de que é patrono O José de Alencar e o fundador o Machado de Assis.
Ao escrever o romance Farda, fardão, camisola de dormir, compreende-se
que razões sobraram para que escolhesse o formato do romance à clef para contar
uma história que tem ressonâncias políticas e que se desenvolve em torno da
luta entre o coronel Agnaldo Sampaio Pereira e o general Waldomiro Moreira. O
primeiro representa a força nazifascista do Estado Novo enquanto o segundo,
embora militar, as forças mais liberais. O livro descreve o emprego dos meios
na luta pelo voto na Academia quando tudo é válido, usa-se uma ofensiva que
esmague a pretensão do inimigo. Pressões, manutenção no emprego, presentes, agrados,
tudo que seja favorável à conquista da vaga.
Os compêndios apontam os vários
motivos que o escritor recorre para exercitar o romance à clef. É motivado pela natureza desse tipo de prosa
de ficção por ser o gênero sujeito à controvérsia do assunto recriado, à
necessidade de informar os fatos com certa discrição, munir-se da cautela para
fornecer informações privilegiadas sobre o que se passa nos bastidores,
preservar a vida íntima ou escândalos de terceiros, que assim escapam de
acusações caluniosas ou difamação. E ainda a escolha reveste-se como vetor de
realização pessoal no desejo de dar à história com sabedoria o desfecho que
gostaria que ela tivesse tido. Acresce a isso a intenção de retratar eventos ou
experiências autobiográficas sem se tornar vulnerável.
A sabedoria de
Jorge Amado é visível neste romance à clef, que recria a face oculta da
Academia, de maneira irreverente, com marchas e contramarchas no correr das
eleições de candidatos vaidosos, na disputa ferrenha no caso pela vaga deixada
com o falecimento de Antônio Bruno, ilustre membro da entidade, para alguns um
senhor poeta, mas doido por mulher. O disfarce, usado nos nomes fictícios de
personagens reais, para que assim camuflados possam atuar no desenvolvimento do
tema vai além do conflito, e, num lance de competência usual de quem sabe
inventar uma história, projeta-se sem retoques um retrato fiel do Brasil
durante o Estado Novo. Emerge da escrita que fere e aponta mazelas um contexto
político cheio de opressões e vilanias
ditatoriais, não respeitando os direitos mais primários do cidadão.
Referências
AMADO, Jorge. Farda,
fardão, camisola de dormir, editora Record,
Rio de Janeiro, 1979.
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Literatura comparada, entrevista, seleção por Álvaro
Cardoso Gomes, Abril
Educação, São Paulo, 1981.
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Discursos, Casa de Palavras, Fundação Casa de Jorge
Amado, Salvador, 1993
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