Um caso difícil
Cyro de Mattos
Causava transtorno à
família o vício que ela havia adquirido. Seu caso foi parar numa psicóloga,
muitas sessões, não adiantou nada. O marido ficava mudando de supermercado para
evitar que ela fosse flagrada com o roubo, o escândalo divulgado na mídia através
do plantão policial, programa Difícil de Acreditar, do jornalista Doutor
Verdade. Sua reputação de médico competente, diretor presidente da Santa Casa
de Misericórdia, chefe de família honrada, seria abalada nos alicerces. Os
filhos seriam atingidos com a mancha que envergonha, servindo de comentários
entre os que gostam de falar da vida alheia.
Quando ia fazer compras no
supermercado, assegurando-se de que não havia ninguém por perto, tirava do
carrinho cheio de compras algum dos produtos escolhidos nas prateleiras e
colocava na bolsa. Claro que no caixa o objeto usurpado não seria relacionado
no pagamento do que havia sido comprado. Foi flagrada pela câmara de filmar os
que gostam de pegar indevidamente algum produto no supermercado quando escondia
na bolsa o objeto para evitar o pagamento e aliviar com isso as despesas com as
compras. Uma cena vergonhosa que o
esposo jamais pensou que haveria de enfrentar seguidas vezes. Da última vez,
diante do gerente a vergonha foi tão grande que pensou até em sumir do
mundo.
Prometeu que aquela era a última vez,
não ia fazer mais isso, expor a família à situação deplorável com a notícia
vexatória que poderia ser divulgada na mídia. “Mulher de médico famoso gosta de
pegar o que não lhe pertence no supermercado e esconder na bolsa.” Já pensaram
que escândalo! Iriam comentar nos corredores do hospital os que gostam de falar
da vida alheia com uma cena saborosa como essa protagonizada pela esposa do
médico famoso e diretor da Santa Casa de Misericórdia.
De novo prometeu ao esposo que não
cometeria mais esse tipo de ato deplorável, não queria emporcalhar a honra da
família com procedimento indecente, pediria ajuda à Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro para tirar de sua vontade compulsiva aquele vício horrível de surrupiar
algum produto quando fosse fazer as compras semanais no supermercado.
O vício era mais forte. Prometia,
jurava, pedia perdão ao marido, acendia vela no oratório para a santa e rezava,
rogava para se livrar dessa doença infame, que espicaçava sua vontade quando ia
fazer compras semanais no supermercado. O fato lastimoso se repetia. Da última
vez não fosse a intervenção do marido, chamado às pressas, o caso ia parar na
delegacia. Recorreu ao psiquiatra, que
depois de muito esforço à luz da ciência conseguiu interromper o seu
procedimento deprimente.
Um dia, o marido, crente que o caso
houvesse sido curado, percebeu que a sua bolsa estava gorda, estufada, com algo
volumoso dentro.
- Abra a bolsa, quero ver o que está
aí dentro.
Ela em pânico.
- Não é nada, é minha escova de
cabelo e a sombrinha.
O marido tomou-lhe a bolsa no
movimento brusco. Abriu e encontrou dentro os dois quilos de carne enrolada no
papel plástico.
- Já lhe disse que não temos
precisão de fazer uma coisa dessa, você não toma vergonha mesmo.
- Prometo que essa será a última
vez.
- De novo a lenga-lenga. Trate de
entregar essa carne roubada a um pobre, vá se arrepender antes que seja tarde.
Quando menos esperar, você será flagrada outra vez pela câmera de filmar o
movimento de gente no supermercado e não vou lhe socorrer. Você irá na viatura
da polícia para prestar depoimento na delegacia.
Em casa relutou em se desfazer da
carne, oferecer a um pobre que vivia de catar lixo na rua, como o marido
queria. No dia seguinte foi buscar a
carne na geladeira para preparar os bifes que seriam servidos na refeição
suculenta do almoço. Desconfiou que a carne tinha sido surrupiada pela metade.
Não havia dúvida, vinha desconfiando das coisas que estavam sumindo da
geladeira rapidamente. Só podia ter sido a empregada,
Pesou a carne na balança,
constatando que estava faltando quase a metade. Bem que estava desconfiando
daquela cara sonsa da empregada, cheia de sorrisos e agrados quando falava com
a patroa. Tinha que ser despachada por justa causa. Não era pessoa que
merecesse a confiança.
O marido:
- Despedir? Isso não farei, nem
pense.
- Por quê? Qual a razão para se manter
em casa uma doméstica ladra.
- Pelo simples fato de que ladrão que
rouba ladrão tem cem anos de perdão.
Com raiva nos olhos, não se conformou
com o que o marido acabava de dizer, fundamentando-se em sábio provérbio
popular, corrente de boca a ouvido.
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