Considerações sobre o
conto brasileiro
Cyro de Mattos
Críticos brasileiros e estrangeiros vêm
contribuindo com estudos e juízos para definir o conto, mas sua variedade
dificulta uma definição satisfatória, bem como a sua expressão que se funde com
outras manifestações literárias, como a poesia e o drama. O conto moderno
incorpora à estrutura elementos de outras áreas artísticas, recorrendo ao
cinema, o teatro, às artes plásticas e à música. Forma de prosa de ficção em
páginas breves intercomunica-se com outras manifestações culturais. Convém
lembrar que a imprensa e a mídia eletrônica vêm afetando os códigos e os
cânones da literatura brasileira nos tempos atuais.
O conto como uma forma de
narrar histórias procede de tempos primitivos. A mais antiga expressão da
literatura de ficção atravessou séculos para tornar-se leitura prazerosa e/ou
crítica do mundo na forma escrita. O interesse insaciável do homem pelas
histórias sempre o acompanhou, antes mesmo que ele fizesse armas de pedra como
extensão da mão para se defender e sobreviver.
Entre nós, não a
narrativa oral, o conto começou a ser cultivado como entidade literária durante
o Romantismo. Impregnado dessa escola, estilo ou tendência, foi que surgiu uma
vocação autêntica para expressar o conto em textos autônomos, elevando-o à
categoria de gênero importante, em sua composição e arte.
Pesquisar a presença e
evolução do conto no Brasil terá como momento maior o de encontro com Machado
de Assis no século dezenove. O autor de Papéis
Avulsos, Páginas Recolhidas e Histórias sem Data praticou a prosa de
ficção curta com a mesma mestria dos romances, a narrativa tradicional absorveu
o corte vertical na estrutura para
a interpelação do destino humano, permitindo a criação de um clima na sondagem
da alma em seu instante agudo.
No fim do século dezenove
e no princípio do vinte, o conto brasileiro buscou os elementos necessários
para representar a vida no espaço geográfico: linguagem, personagens, ação,
cenas e costumes, elementos capazes de fixar a paisagem humana e física de um
país telúrico. Ao desdobrar na história os elementos do espaço geográfico, o
conto dessa época credenciou-se através de uma vertente regional, em que se
destacam o paulista Valdomiro Silveira, o gaúcho João Simões Lopes Neto, o
mineiro Afonso Arinos e o goiano Hugo de Carvalho Ramos.
Com o Modernismo, que se
mostrou primeiro com a poesia e depois com o romance, nacionalizando nossos
temas, autores sensíveis e criativos introduziram modificações nos elementos
tradicionais do conto. A linguagem deixou de ser convencional, desprezou-se a
fabulação acadêmica que fazia com que o ficcionista escondesse o imaginário,
mascarando-se em seu relacionamento interior com o mundo. Nesse momento do
conto brasileiro, em que a fabulação deixou de acontecer linearmente,
sobressaem Mário de Andrade, com a valorização da nota lírica justaposta à
dispersão do enredo, e Antônio de Alcântara Machado, transpondo o popular ao
nível literário, introduzindo um novo personagem à literatura brasileira, o
ítalo-brasileiro. Cabe lembrar antes o impressionista Adelino Magalhães, com o
seu jeito de flagrar a vida, focando-a no instante que se esgota em si mesmo,
documentando-a numa cena para deixar no leitor aquela impressão que causa pena,
solidariedade e riso.
Na evolução do nosso
conto, dois caminhos divergentes, próprios da literatura, podem ser
visualizados: o do elogio da linguagem com o seu fetichismo e o da economia dos
meios expressionais com a linguagem descarnada. Por esses caminhos o Brasil
tornou-se, de uns tempos para cá, um país de admiráveis contistas. Lembrando alguns
nomes dessa contística maior, na fatura psicológica encontramos Lígia Fagundes
Telles, Samuel Rawet, Tânia Faillace; nas localizações geográficas com apelos
universalistas, João Guimarães Rosa, Adonias Filho, Bernardo Elis, Caio
Porfírio Carneiro e Ricardo Ramos (na
primeira fase), assim como nas aculturações humanísticas dessa tendência,
Juarez Barroso, Flávio José Cardozo e João Ubaldo Ribeiro; na propensão
alegórica, através de espaços atemporais
intercomunicantes, José J. Veiga, Murilo Rubião e Maria Lysia Corrêa de
Araújo; no real captando pedaços de vida, com o autor participando e julgando o
mundo no cotidiano violento, de solidão, miséria, medo, sonhos incabíveis,
sentimentos perversos, humor de cenas ordinárias que causam espanto, riso e/ou pena,
Rubem Fonseca, João Antônio, Dalton Trevisan, Luís Vilela, José Edson Gomes e
Wander Piroli; na experimentação da linguagem poética como mergulho na situação
existencial do indivíduo, criando a atmosfera no lugar do enredo, Clarice
Lispector, Walmir Ayala, Maura Lopes Cançado, Nélida Piñon, Helena Parente
Cunha e Elias José.
Alegórico, documental,
psicológico, impressionista, supra real, regional de alcance universal, de
antecipação na corrente de ficção científica, o conto no Brasil circula hoje em
sua dimensão própria, convincente, não como aprendizado para o autor dar o
passo mais largo e definitivo de romancista, como muitos concebiam. Críticos
apontam que há nesse conto emancipado feito entre nós hoje a inevitável
influência de latino-americanos no caminho de ficcionistas jovens, porém,
nossos contistas não são mais situados com referências a escritores
estrangeiros: Maupassant, Tchecov, Kafka e Mansfield. Consolidado na trajetória
ficcional que ilude na síntese, o conto brasileiro contemporâneo circula com a
sua marca própria, seu legítimo acento, sua feição eficaz e dinâmica atraente.
Acham os clássicos que
conto é aquilo que conta alguma coisa, desenvolvendo-se a história nos momentos
tradicionais de princípio, meio e fim. Síntese de emoção aguda, acidente de
vida, tensão e concisão no espaço que prevalece sobre o tempo, acham os
modernos. Seja como for, encontrará o leitor nas breves páginas do conto atual
no Brasil um feixe de observações, o dizer sobre coisas agudas em informações
lúcidas. Pelo imaginário, temática pessoal, densidade, linguagem tradicional ou
ligada à vanguarda as gradações e variações da condição humana: ternura,
sentimentos baixos, humor, conflitos, a máquina do sistema na crueldade de seu
absurdo, o dilema da razão a gerar insegurança, abandono, contradições e
perplexidades.
Na sensação de que o
mundo é falho, participará, enfim, do mistério do viver sob o trânsito dos
humanos, o qual alcança hoje ritmo veloz, que cada vez mais assusta, subversão
constante dos valores como premonição do caos, a que o conto como instante de
reflexão, testemunho fragmentário do real ou em sua visão metaforizada do
mundo, dilatando o micro no macro, tão bem se ajusta. Ainda assim, visto esse
estar crítico do ser humano na trama, acena das fissuras a esperança como
possibilidade do amor, vocação que o indivíduo é possuidor em sua problemática
existencial para aflorar das rupturas e reconstruir o mundo.
A literatura brasileira
detém hoje a eficiente autonomia de um gênero que possui joias insuperáveis.
Uma das grandes invenções dessa entidade literária no discurso que combina,
harmoniosamente, o a forma e o fundo, a
que assistimos hoje, foi levada no Brasil por Dalton Trevisan. Esse mestre da
ficção breve na prosa enxuta e atraente, com mais de uma vintena de livros
publicados, possui uma maneira de dizer histórias originalíssima no encalço de fixar os encontros e
desencontros de todos os Joões e Marias, de uma Curitiba descida ao chão das
pequenas misérias, frustrações, devassidões, fetichismos inúteis.
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