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sexta-feira, 24 de março de 2023

 

Considerações sobre o conto brasileiro           

                Cyro de Mattos

 

 

 Críticos brasileiros e estrangeiros vêm contribuindo com estudos e juízos para definir o conto, mas sua variedade dificulta uma definição satisfatória, bem como a sua expressão que se funde com outras manifestações literárias, como a poesia e o drama. O conto moderno incorpora à estrutura elementos de outras áreas artísticas, recorrendo ao cinema, o teatro, às artes plásticas e à música. Forma de prosa de ficção em páginas breves intercomunica-se com outras manifestações culturais. Convém lembrar que a imprensa e a mídia eletrônica vêm afetando os códigos e os cânones da literatura brasileira nos tempos atuais.

O conto como uma forma de narrar histórias procede de tempos primitivos. A mais antiga expressão da literatura de ficção atravessou séculos para tornar-se leitura prazerosa e/ou crítica do mundo na forma escrita. O interesse insaciável do homem pelas histórias sempre o acompanhou, antes mesmo que ele fizesse armas de pedra como extensão da mão para se defender e sobreviver.

Entre nós, não a narrativa oral, o conto começou a ser cultivado como entidade literária durante o Romantismo. Impregnado dessa escola, estilo ou tendência, foi que surgiu uma vocação autêntica para expressar o conto em textos autônomos, elevando-o à categoria de gênero importante, em sua composição e arte.

Pesquisar a presença e evolução do conto no Brasil terá como momento maior o de encontro com Machado de Assis no século dezenove. O autor de Papéis Avulsos, Páginas Recolhidas e Histórias sem Data praticou a prosa de ficção curta com a mesma mestria dos romances, a narrativa tradicional absorveu o corte vertical na  estrutura para a  interpelação do destino humano,  permitindo a criação de um clima na sondagem da alma em seu instante agudo.

No fim do século dezenove e no princípio do vinte, o conto brasileiro buscou os elementos necessários para representar a vida no espaço geográfico: linguagem, personagens, ação, cenas e costumes, elementos capazes de fixar a paisagem humana e física de um país telúrico. Ao desdobrar na história os elementos do espaço geográfico, o conto dessa época credenciou-se através de uma vertente regional, em que se destacam o paulista Valdomiro Silveira, o gaúcho João Simões Lopes Neto, o mineiro Afonso Arinos e o goiano Hugo de Carvalho Ramos.

Com o Modernismo, que se mostrou primeiro com a poesia e depois com o romance, nacionalizando nossos temas, autores sensíveis e criativos introduziram modificações nos elementos tradicionais do conto. A linguagem deixou de ser convencional, desprezou-se a fabulação acadêmica que fazia com que o ficcionista escondesse o imaginário, mascarando-se em seu relacionamento interior com o mundo. Nesse momento do conto brasileiro, em que a fabulação deixou de acontecer linearmente, sobressaem Mário de Andrade, com a valorização da nota lírica justaposta à dispersão do enredo, e Antônio de Alcântara Machado, transpondo o popular ao nível literário, introduzindo um novo personagem à literatura brasileira, o ítalo-brasileiro. Cabe lembrar antes o impressionista Adelino Magalhães, com o seu jeito de flagrar a vida, focando-a no instante que se esgota em si mesmo, documentando-a numa cena para deixar no leitor aquela impressão que causa pena, solidariedade e riso.

Na evolução do nosso conto, dois caminhos divergentes, próprios da literatura, podem ser visualizados: o do elogio da linguagem com o seu fetichismo e o da economia dos meios expressionais com a linguagem descarnada. Por esses caminhos o Brasil tornou-se, de uns tempos para cá, um país de admiráveis contistas. Lembrando alguns nomes dessa contística maior, na fatura psicológica encontramos Lígia Fagundes Telles, Samuel Rawet, Tânia Faillace; nas localizações geográficas com apelos universalistas, João Guimarães Rosa, Adonias Filho, Bernardo Elis, Caio Porfírio Carneiro  e Ricardo Ramos (na primeira fase), assim como nas aculturações humanísticas dessa tendência, Juarez Barroso, Flávio José Cardozo e João Ubaldo Ribeiro; na propensão alegórica, através de espaços atemporais  intercomunicantes, José J. Veiga, Murilo Rubião e Maria Lysia Corrêa de Araújo; no real captando pedaços de vida, com o autor participando e julgando o mundo no cotidiano violento, de solidão, miséria, medo, sonhos incabíveis, sentimentos perversos, humor de cenas ordinárias que causam espanto, riso e/ou pena, Rubem Fonseca, João Antônio, Dalton Trevisan, Luís Vilela, José Edson Gomes e Wander Piroli; na experimentação da linguagem poética como mergulho na situação existencial do indivíduo, criando a atmosfera no lugar do enredo, Clarice Lispector, Walmir Ayala, Maura Lopes Cançado, Nélida Piñon, Helena Parente Cunha e Elias José.

Alegórico, documental, psicológico, impressionista, supra real, regional de alcance universal, de antecipação na corrente de ficção científica, o conto no Brasil circula hoje em sua dimensão própria, convincente, não como aprendizado para o autor dar o passo mais largo e definitivo de romancista, como muitos concebiam. Críticos apontam que há nesse conto emancipado feito entre nós hoje a inevitável influência de latino-americanos no caminho de ficcionistas jovens, porém, nossos contistas não são mais situados com referências a escritores estrangeiros: Maupassant, Tchecov, Kafka e Mansfield. Consolidado na trajetória ficcional que ilude na síntese, o conto brasileiro contemporâneo circula com a sua marca própria, seu legítimo acento, sua feição eficaz e dinâmica atraente.

Acham os clássicos que conto é aquilo que conta alguma coisa, desenvolvendo-se a história nos momentos tradicionais de princípio, meio e fim. Síntese de emoção aguda, acidente de vida, tensão e concisão no espaço que prevalece sobre o tempo, acham os modernos. Seja como for, encontrará o leitor nas breves páginas do conto atual no Brasil um feixe de observações, o dizer sobre coisas agudas em informações lúcidas. Pelo imaginário, temática pessoal, densidade, linguagem tradicional ou ligada à vanguarda as gradações e variações da condição humana: ternura, sentimentos baixos, humor, conflitos, a máquina do sistema na crueldade de seu absurdo, o dilema da razão a gerar insegurança, abandono, contradições e perplexidades.

Na sensação de que o mundo é falho, participará, enfim, do mistério do viver sob o trânsito dos humanos, o qual alcança hoje ritmo veloz, que cada vez mais assusta, subversão constante dos valores como premonição do caos, a que o conto como instante de reflexão, testemunho fragmentário do real ou em sua visão metaforizada do mundo, dilatando o micro no macro, tão bem se ajusta. Ainda assim, visto esse estar crítico do ser humano na trama, acena das fissuras a esperança como possibilidade do amor, vocação que o indivíduo é possuidor em sua problemática existencial para aflorar das rupturas e reconstruir o mundo.

A literatura brasileira detém hoje a eficiente autonomia de um gênero que possui joias insuperáveis. Uma das grandes invenções dessa entidade literária no discurso que combina, harmoniosamente, o a forma e o fundo,  a que assistimos hoje, foi levada no Brasil por Dalton Trevisan. Esse mestre da ficção breve na prosa enxuta e atraente, com mais de uma vintena de livros publicados, possui uma maneira de dizer histórias originalíssima   no encalço de fixar os encontros e desencontros de todos os Joões e Marias, de uma Curitiba descida ao chão das pequenas misérias, frustrações, devassidões, fetichismos inúteis.

Nessa causticante comédia humana, povoada de desastres e ressentimentos, temos a expressão admirável de como se pode reconhecer o máximo no mínimo, identificando-o tocado daquelas verdades essenciais que fazem da vida comoção de ínfimos universos corroídos de duro lirismo.

 

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