A
Utopia dos Palmares
Cyro
de Mattos
Conforme
a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, o Dia Nacional da Consciência Negra é
comemorado em 20 de novembro, pois foi
nesse dia, em 1695, que morreu Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Ele
representou a luta do negro contra a escravidão no período do Brasil Colonial.
Na trama implacável dos destinos, marcada de sangue pelos feitos do feroz aventureiro europeu, estava
reservado ao Quilombo dos Palmares na serra da Barriga, em Alagoas, com o seu líder Zumbi,
o lugar onde se deu um caso extremo de resistência ao sistema.
O
Brasil Colonial procurou roubar a alma do negro africano para
transformá-lo em coisa, fazendo com que
ele sustentasse o mundo do açúcar.
Durante dois séculos o Brasil foi o açúcar, para ele vivíamos,
esquecidos da madeira de lei encarnada que nos batizou. Para produzi-lo era
preciso que fosse plantado na “terra que em se plantando tudo dá”, como já
havia informado o escrivão Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal sobre chão dadivoso
quando fomos descobertos por Pedro Álvares Cabral.
O
açúcar tinha uma voraz fome de terras,
precisava de trabalhadores resistentes para as grandes plantações. Exigia que
esses trabalhadores vindos da África fossem escravos. A ideologia dominante é
que isso era bom porque bom era o senhor branco, o dono do canavial imenso,
criatura que, dessa maneira, tinha sido
privilegiada pela natureza. Nessa visão estática de mundo, o negro africano era
colocado fora do círculo da família
patriarcal. Como objeto deveria servir ao senhor branco, sem oferecer qualquer
resistência. Na sociedade colonial escravista, os lugares estavam fixados de
antemão. Pretos eram escravos, índios eram servos e brancos eram livres.
Nessas
condições, o negro africano não tinha chance de ser alguém. Daí que certa vez
houve a fuga de quarenta deles na Zona da Mata quando queimaram e abandonaram
uma fazenda de açúcar. Enfrentaram tudo que era hostil pelo mato e foram dar na
serra da Barriga onde fundaram o Quilombo dos Palmares. Ali a ideologia do
senhor branco seria afugentada pela utopia do escravo africano, que queria ser
livre, ao plantar na serra da Barriga um pedaço da África, que lhe havia sido
roubada pelo Brasil açucareiro.
Em
1635, o Quilombo dos Palmares era formado por três aldeias. Aí por volta de
1640 viveriam cerca de dez mil quilombolas. Eram fortes e contentes, plantavam
de tudo e não se serviam da terra como
fonte única de riqueza, através do açúcar. Cada família em Palmares ocupava um lote de terra, o que tirava dela
era para o seu sustento. Em 1670, já dezenas de povoados cobriam mais de seis
quilômetros quadrados. Palmares havia se transformado em um Estado, situado na
borda do litoral do mundo canavieiro. Tornava-se por isso mesmo em grave ameaça
ao império do açúcar, com seu sistema
fixo calcado no braço escravo, em benefício exclusivo do senhor de engenho.
Tinha
uma população de trinta mil almas quando sob o comando de Zumbi sucumbiu às
investidas de Domingos Jorge Velho, chefe de um exército armado de canhões,
constituído de nove mil homens. Sucessor do trono de Ganga Zumba, Zumbi mostrara ser um guerreiro implacável antes mesmo de ser derrotado por Domingos Jorge Velho. Há
quem diga que ele se pareceu aos heróis
de guerra Aníbal, Alexandre, Ciro e Napoleão. Diferentes deles porque
não lutou para conquistar glórias, mas para fazer de Palmares uma África livre
no chão açucareiro do Brasil Colônia.
O
Brasil tem uma dívida impagável para com o negro. Não se pode esquecer Zumbi,
não se deve esquecer Palmares. Até fiz uns versos para que isso não aconteça
comigo e outros. Leia meu poema.
Abolição
- Na zoeira do terreiro/ Batucam que
batucam/Tambores sem cambão.// Trepidam nesses punhos/ O suor, a lágrima, o
sangue/ Nos rastros do negro fujão.// Todos batem nesse tambor,/ Pode até não
ser de fato / A tão esperada abolição.// Mas é o começo duma hora/ Que se faz
tão grandiosa/ Como o verde na amplidão.// África agora é uma só voz/ Na
esperança das manhãs/ Sem o ferro do vilão.
· Texto publicado na
Revista África e Africanidades, edição 9
*Cyro
de Mattos é escritor, da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da
Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Medalha Zumbi dos Palmares da
Câmara Municipal de Salvador.
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