Um Sonetista Primoroso
Cyro de Mattos
Na língua portuguesa, o soneto tem sido
cultivado por poetas que se tornaram referência obrigatória na arte difícil e
delicada de armar a boa poesia, para celebrar a vida e a morte. Em Portugal são
exemplos: Camões, Bocage, Antero de
Quental, Fernando Pessoa e Florbela Espanca. No Brasil: Gregório de Matos,
Cláudio Manoel da Costa, Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Jorge de Lima,
Sosígenes Costa, Carlos Pena Filho e Vinicius de Moraes. Entre nós baianos
ressalvem Ruy Espinheira Filho, Afonso Manta, Florisvaldo Mattos e João Carlos
Teixeira Gomes, um sonetista primoroso.
Em ensaio percuciente, que antecede aos
não menos excelentes sonetos do livro O
labirinto de Orfeu (2014),
o ensaísta e poeta João Carlos Teixeira Gomes refere-se aos dois epítetos
“sonetoso” e “sonetífero” criados como galhofa contra os autores de soneto.
Registra uma série de expressões em desfavor das andanças do rejeitado poema de
quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico
acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo
poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu
do bolor formalista”, “chavão de segunda ordem”, “formalismo oco e vazio”,
“museu de velharias passadistas” .
Não obstante o comportamento contundente
dos que desfazem dessa imbatível criatura nanica, sua garra permite que
continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva nos seus modestos passos de
quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica e feitiço do imaginário
atingir o ponto máximo do prazer na alma. Segue indiferente às acusações e
atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese.
Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, de
poetas célebres com suas criações em versos longos, eloquente quantidade de
estrofes.
É dado a formar uma sequência quando
vários poemas são ligados entre si por uma concepção e execução magistrais do
tema, como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare.
Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15
sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos
são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou
soneto-síntese.
Em O labirinto de Orfeu, João
Carlos Teixeira Gomes reafirma as qualidades de poeta expressivo, com
maiúscula, que sabe a proeza da inspiração como manifestação da ‘outridade’ do
homem. O soneto em suas mãos, até certo ponto divinas, é instrumento legítimo
que se torna poema indelével de quem sabe arrebatar delírios, construir
paixões, cultivar ilusões, carregar fardos, cair em desterros, colher perdas,
erguer perjuros, elencar encantos, vestir-se na náusea dos vazios. De maneira
impressionante, o soneto aqui abre-se à participação de um acontecimento
festivo, raro, rico, exuberante. A recepção poética possibilita ao leitor a
recriação do instante original. Transmuda-se o soneto em uma festa de imagens
opulentas, uma comunhão do saber aliado à beleza para ser um objeto estético
primoroso, espraiar na vida as zonas encantatórias do poder ser através das
mãos de um mestre. É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no
homem como resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de
transcendência com assento em apetites e desejos. Municiado dessa voz estranha,
em cuja inspiração tira o homem de si mesmo para ser tudo o que é, percebemos
que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é de um
legítimo poeta recriador de arquétipos, modelos, mitos. De algo que se confunde
com cada um de nós, sendo evocação, recriação de uma experiência que ressurge
de uma senda que está dentro do lado noturno de nós mesmos.
Muitos desses sonetos de O labirinto de Orfeu são joias raras.
Usado nos moldes clássicos do decassílabo, o soneto do excelente poeta baiano
opera com os hábitos do delírio, sonho, cantares de uma lira sempre tocada com
as notas de unidades rítmicas com vistas ao alcance da imagem, a qual lateja a sensação
de que poetizar é criar com as palavras, fazer poema com significação, mesmo
que essa imagem do mundo transmitida pelo poeta custe a ele a indiferença aos
seus sonhos constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.
Sonoridade que serve como vínculo do
verso para salientar a significação, unidade rítmica que sustenta a ideia
fluindo na estrofe como música, ardência que soa na rima com vibrações da
palavra tradutora de inventiva rumorosa, que emana com luzeiros e fulgores,
procedidos como hábitos e atitudes do poeta eficaz. São algumas marcas
recorrentes do discurso desse notável sonetista, que não se intimida em
adjetivar a substância constitutiva do conteúdo em cada verso. Na sua experiência de sonetista competente, tudo
isso acontece como um fato natural, de facilidade constitutiva, caracteres que
por serem hábitos antigos instauram uma técnica que não exerce funções de
iludir com o efeito ao leitor desprevenido. Não é adorno nem arranjo. Trata-se
de atitude essencial na maneira de expor os movimentos da estrofação, assentada
na cadência das unidades rítmicas, que não se desenvolvem como artimanha, no
pior sentido. O sonetista sabe converter o artefato em sedução de lances
primorosos. Nas artes de iludir com a
lira, o exímio domador de frase na estrofe de dez versos toca a alma com ventos
que se confundem com os seus próprios laços, recorrências constituídas de dons
propícios.
Navegador de agudas águas, timoneiro nas
ondas como sonho, a festa do soneto nesse poeta baiano não é fuga vulgar,
maneirismo, pelo contrário, evento que se irradia festivo, como “incenso da
vida, no real atormentada.” E porque faz de uns belíssimos momentos do sonhar a
sua enxada, “à glória de colher está propenso quem mais souber lavrar a terra
alada.” Penitente que se impõe ao sacrifício, nesta saga doida e perdida, o
poeta encarna-se nas batalhas do amor, submete-se aos tormentos do mistério.
Como escravo da fiandeira do caos tem o peito levado aos desaprumos. Com a
amada impune, tem a consciência de que essa astuta tecelã das doces malhas “vem
da força do amor que prende e une”, o feitiço que espalha.
Prisioneiro de ânsias rumorosas, servo
dessa mulher com finos dedos na tessitura de suas malhas, qual musa floral da
rosa apetecida, o poeta, guardador de segredos que seduzem, sabe a beleza que
ergue da vida o autêntico poema, com o instante luminoso riscado no eterno.
Consegue grandes feitos com versos que são puras fantasias, falam da emoção no
tempo que se repete, nunca para, nunca cansa, enche os silêncios reconhecidos
no enigma, no obscurecimento do mundo. O sonetista modelar tem a dignidade de
cantar e pensar com a ideia, pois está convencido de que a razão e a emoção são
como os troncos vizinhos do poetar.
Inspiração e transpiração na dor
presenteiam ao sonetista o seu vigor, plasmam com sabedoria o labirinto que
esse Orfeu baiano caminha por entre tormentosa lida, sabedor que é como poucos
do viver que está no logro da paixão, nesse amor que foi o sonho compartido
pelo qual se tornou o duplo do amado por Eurídice.
Por castigo do fado que o faz cantor
prisioneiro, o sonetista surpreendente em rimas e imagens comove o coração de
quem o recita. Os seus cantos mais que perfeitos, que espantam com as
tragédias, dramas e comédias, são como as chamas da paixão que o sujeitam,
funcionam como frutos amadurecidos nas estações da vida e morte, de tudo que
sobreleva à flama do viver que não perdura.
Há nesse labirinto de Orfeu, que João
Carlos Teixeira Gomes ergue com mãos de mestre, o reconhecimento de que o
soneto não é uma camisa de força, mas harmonia plena que a beleza atinge com
uma rica combinação de signos, símbolos, mitos, arquétipos, unidades rítmicas,
rimas, sentidos. Um milagre do poema que é erguido com arte, engenho, alma e
vigor perante a existência. Talento que se apresenta com uma eficiência
espantosa. No resultado final da imagem presta-se ao fogo do amor, que cresce
como luz na treva.
Referência
GOMES, João Carlos Teixeira. O
Labirinto de Orfeu, Topbooks Editora, Rio de Janeiro, 2014.
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