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quarta-feira, 12 de março de 2025

 

A crônica, a vida e a ternura

Henrique Fendrich*

 

Há pouco mais de 10 anos, eu percorria uma biblioteca pública em Brasília, ávido por descobrir novos cronistas, escritores que pudessem me oferecer um mínimo que fosse daquilo que já havia me encantado em Rubem Braga. A seção de crônicas não era das maiores, mas eu tirava cada livro da estante e considerava gravemente se deveria pegar emprestado este ou aquele. Um desses livros era “Alma mais que tudo”, de Cyro de Mattos que me agradou já pelo título. “Este”, decidi.

 

Foi a partir de então que passei a ter notícias regulares de Itabuna e de como viam o mundo aqueles que tiveram a sorte de nascer no mesmo lugar que Jorge Amado. A cidade do sul da Bahia, afinal, é para Cyro o mesmo que Cachoeiro do Itapemirim é para o Braga, um lugar com suas histórias, seus dramas, seus personagens e até sua personalidade, e tudo isso, ao ser transposto para o texto da crônica, faz a gente se lembrar da cidade de cada um de nós, por mais distante que ela fique.

 

O parentesco com o cronista capixaba não se limitava ao encanto e às memórias de sua cidade de origem, pois Cyro também compartilhava uma íntima relação com a natureza, comungando do grande mistério que é simplesmente estar vivo. Com a sua prosa elegante e correta, ele demonstrava grande sensibilidade, e por isso um dia eu o convidei a escrever na revista de crônicas que leva o nome de Rubem.

 

Ele aceitou, e desde então a cada duas semanas publicamos uma crônica sua, e sempre é uma crônica que mantém aquelas boas características que me fizeram conhecê-lo e que, agora percebo, também estão presente por todo este “A mulher que virou beija-flor” – que, aliás, é o nome de uma das mais belas peças do livro, com toda a sua poesia e o seu toque de fantasia a favor da ternura e da vida. 

Escritor que circula por vários gêneros, Cyro também aplica aquilo que é próprio do conto na forma breve da crônica, e daí resultam pungentes flagrantes da vida, com histórias cheias de candura e beleza, como “Chuva de janeiro”, algumas delas bem ligeiras, ágeis em seus diálogos, e todas marcadas por um sentimento que parece ser o de compaixão pelo ser humano, em sua luta para construir a própria vida.

 

Não admira que, com muita frequência, o lirismo já pronunciado de suas crônicas se transforme em poesia pura e simples, com os versos em geral servindo para um desfecho que ilustra e ao mesmo tempo reforça o significado de sua prosa. Não se consegue fazer crônica muito longe desses elementos, é sempre a vida, observada por um olhar de afeto, às vezes se expandindo até chegar ao formato de um verso.

 

É de se destacar que em um número significativo das histórias aqui apresentadas os personagens são já pessoas de certa idade (em um caso, até com 102 anos!). O cronista já está, ele próprio, na casa dos 86, e é estupendo que, a essa altura, ainda esteja escrevendo crônicas, inclusive aquelas em que tematiza, de forma madura e bonita, os dramas de uma faixa etária que costuma ter pouco espaço nos livros.

 

Mas não se pense que, por conta disso, o cronista também não seja um menino. É igualmente um menino e, ao contar uma história do passado, o tempo volta e aquilo acontece outra vez, um mundo de inocência, alegria e futebol no interior da Bahia. A crônica também é um terreno da memória e, ao evocar as próprias lembranças, o cronista permite que o leitor tenha acesso às dele, talvez não tão diferentes assim.

 

Tudo isso sempre com um importante vínculo com a cidade, seja a de memória, a de quando a cidade tinha lá os seus 15 mil habitantes, seja a do presente, moderna, automatizada, e que mesmo assim teve o seu fluxo interrompido na pandemia. Em todas as fases, é ali que encontramos o cronista, em sua maneira sensível de conceber a vida “na mais completa leitura do mundo, mas através da arte da palavra”.

 

Calhou que a cidade de Cyro ficasse afastada dos grandes mercados editoriais, o que torna ainda mais difícil a aspiração de viver apenas de literatura, o escritor, e o cronista mais do que todos, é antes de tudo um forte, alguém que nem conseguiria agir de outra maneira: “O sapo pula, o pássaro voa, o autor desta crônica escreve porque assim devia ser. Assim é sua maneira de ser útil ao mundo”.

 

Na mistura dos valores cristãos com a crença nos orixás, na condição sincrética de sua fé, Cyro encontra a força para continuar a “fazer a leitura do mundo um pouco mais acessível” – eis a utilidade do que escreve, e não é pouca. Não será a crônica[cp1]  que vai mudar o mundo, mas ela dá testemunho do tempo em que se escreve. E a ternura de histórias como a deste livro já alivia nosso peso e nos faz viver melhor.

 

*Henrique Fendrich

Jornalista, escritor, cronista.

Editor de Revista Rubem

 


 [cp1]

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