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quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

                         Os Doces de Minha avó
                                           ( Cyro de Mattos)

                                  
A avó Ana acordava cedo todos os dias. Os passarinhos ainda estavam empoleirados na mangueira do quintal. Dizia que Deus ajuda a quem madruga. Nesse ritmo de acordar perto de clarear o dia e começar logo a se ocupar com as tarefas de casa, a avó Ana ajudou o avô  Campos a criar oito filhos, três homens e cinco mulheres. Os filhos foram casando quando ficavam adultos e de repente os meus avós se viram sozinhos numa casa grande,  de construção simples. As paredes eram de adobe e o piso de cimento.
Não conheci meu avô Campos, era muito pequeno, estava engatinhando. Dele tenho um retrato na pequena moldura em que aparece o rosto de um homem idoso com os cabelos pretos e finos. O rosto gordo, a pele alva, os lábios como se fossem riscos de tão finos, o bigodinho bem aparado. Meu pai falava que ele era um seleiro de mão cheia, a freguesia que o procurava era enorme, enchia sua sapataria A Bota Encantada na rua do comércio.
Imagino meu avô por trás do balcão atendendo o freguês, um fazendeiro  abastado, a examinar a bota feita pelas mãos competentes dele.  O couro da bota  bem trabalhado, brilhando com o verniz aplicado, os adornos embelezando com os desenhos criados por meu avô.  Imagino meu avô numa casa de couro, com a sovela, a sola e a fivela, atento e alegre na manhã luminosa,  criando uma sela macia, um par de botas, sapatos, alpercatas e  chinelos. Meu pai dizia que meu avô era um mágico, tudo que fazia com o couro ou a sola macia lograva extrair acabamento perfeito, que sempre dava prazer ao freguês. Esses vestígios de meu avô,  recolhidos através das lembranças que meu pai transmitiu-me,  dão-me a sensação de que ele acabou de sair do seu retrato emoldurado e  se aproximou  de mim, para envolver-me agora  em carícias que não tive.
   Minha avó Ana era uma doceira de mão cheia.  Gente da classe rica contratava suas artes  para ela fazer  os doces de casamento e aniversário. Ela ia visitar o neto com freqüência. 
- Bênção, vó.
- Deus te abençoe, meu neto.
E me dava o pequeno embrulho.
- Olhe aqui o doce que eu trouxe pra você.
Cocada de coco, de abacaxi ou  de cacau.
Às vezes ela trazia na compota o doce de  leite, de  batata doce ou  goiaba.
Minha  mãe era também uma boa doceira, aprendera a arte de fazer doce com minha avó. Embora eu gostasse do doce que a minha mãe fazia, o de  minha avó tinha um sabor especial. Dava água na boca só de imaginar. 
Não gostava quando minha mãe colocava cebola, tomate  e coentro na sopa. Ficava embirrado sem querer tomar. Minha mãe ralava comigo e prometia me botar de castigo se eu não tomasse. “É pra seu bem, filho, tome a sopa que está deliciosa.” Acrescentava que sem  cebola, tomate e coentro a sopa não pegava gosto. Tomava a sopa depois de tanto minha mãe pedir e me prometer que aquela era última vez que aquilo ia acontecer.
Contava à minha avó o que minha mãe fazia comigo para tomar a droga daquela sopa. Ela  interferia e aconselhava minha mãe a  não fazer mais aquilo.
- É a natureza do menino, você tem que entender – pigarreava e concluía zangada: - Você faça a sopa de agora em diante como o  meu neto quer.
Minha avó Ana gostava de contar histórias para o neto do tempo em que os bichos falavam. Contava histórias para o neto sorrir. Contava histórias para o neto voar. Contava histórias para o neto sonhar. Contava histórias para o neto dormir.
Quando o rio Cachoeira amanheceu furioso, espalhando água para todos os lados, minha avó temeu que a enchente alcançasse a casa onde eu morava. Apressada foi me buscar para que eu fosse  dormir  na sua casa, que ficava numa parte alta da cidade. Meus pais não quiseram ir. Fiquei mais de duas semanas  na casa de minha avó, à espera  que o rio baixasse suas águas barrentas e zangadas. Foi aí,  nesse tempo de muita chuva, relâmpago e trovoada, que minha avó mais demorou contando muitas histórias para eu sorrir, voar, sonhar e dormir.
Já estava acostumado a morar com minha avó. Fiquei triste quando tive que retornar de sua casa para a de  meus pais quando o rio Cachoeira voltou ao seu curso normal.
Ainda hoje, com a idade avançada, lembro de minha avó. Às vezes quando estou sozinho, pensando, pensando, não tenho dúvida de  que  ela  está morando no paraíso desde que partiu  desta vida para a outra no além. Mas tem uma coisa que me preocupa, é se ainda vou encontrar com ela quando acontecer a minha partida deste mundo de cá para o de lá.  É que não  tenho conseguido ser doce como minha avó foi nos caminhos desta vida. Quando fizer essa viagem sem volta, penso que  devo ir para o purgatório, lugar onde ficam as almas do pecador que não tenha cometido os males piores no lado de cá desta vida. E há quem diga que as almas que vivem no paraíso não se misturam com as que estão no  purgatório.  E do purgatório minha alma não vai poder sair para visitar a de minha avó, que certamente  estará  vivendo para sempre  no paraíso,  entre os  santos e os anjos. 
Mas tenho certeza que ela dará um jeito nisso tudo. E como nunca falhou nessas horas, irá me visitar no purgatório, levando os doces mais deliciosos que costumava fazer para o neto.

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