Dois Centenários Grapiúnas:
Sosígenes Costa e Nelson Schaun
James Amado
Duas personalidades que se marcaram no perfil do mundo cultural sul-baiano, Sosígenes Costa e Nelson Schaun, têm centenário de nascimento este ano. Seus trabalhos e paixões impõem-se à rememoração. Sosígenes Costa, que teve a poesia por destino, imaginou uma mítica história de sua terra e sua gente, mas datou-a “do tempo do onça, em que o rio não tinha cacau” e misturou nesse enredo os deuses do Olimpo e os que ele criou na sua mitologia indígena, aboliu o néctar e a ambrosia do banquete dos gregos e os substituiu pelo suco da polpa do cacau: E o cacau foi chamado o alimento do céu.
A origem divina dessa lavoura se mostra, com clareza, quando nasceram Sosígenes e Nelson, e por sobre a imensidão da floresta que ia da foz do rio Cachoeira à barra do Jequitinhonha, terá havido a cimeira dos deuses. Não somente os locais, mas todos eles num congresso de ventos. Maravilhados com a beleza do mar e da mata virgem, deitaram sobre ela uma bênção consensual. A bênção divina foi rapidamente levada à prática e dois novos elementos se juntaram ali: um odor denso, moreno, cobriu toda a região, encheu todos os peitos do mesmo anseio, todas as cabeças do mesmo e único sonho.
Nelson Schaun e Sosígenes Costa, dois legítimos grapiúnas, nasceram no primeiro ano do último século do milênio. O cacaueiro, que nenhum deles plantou, até já teria deixado de produzir, mas seus trabalhos e paixões são ainda palpáveis, mesmo que, para alguns, possam parecer de duvidosa utilidade. Neste relato, que agora se faz pedestre, retomo da memória suas figuras num mesmo dia-a-dia sem aventura, diferentes uma da outra mas que se aproximam e se assemelham no lastro comum que animou seu pensamento.
Nelson nasceu em Ilhéus, Sosígenes chegou de Belmonte aos 16 anos. Nunca saíram dali, a não ser por raros e breves dias; Ilhéus era o núcleo urbano central do mundo cacaueiro, dali a lavoura subira os rios para o interior. Num movimento inverso, a ela chegavam as cargas de amêndoas secas, nos vagões de brinquedo da ferrovia dos ingleses, transferidas em alvarengas aos cargueiros estrangeiros que ancoravam diante da avenida da praia, pois o porto somente recebia embarcações de pequeno calado. Ilhéus era o centro nervoso do processo de produção, cofre dos primeiros bancos, comprava e pagava à vista, com seus agentes por todo o interior, o cacau miúdo dos posseiros e burareiros e as safras numerosas dos grandes fazendeiros.
Era ela com seu mar e suas colinas, e era nova em folha, ao tempo de Nelson e Sosígenes; de discutível antigüidade tinha apenas a igrejinha de São Jorge; dispensava fortes coloniais que lhe recordassem antigos canaviais, donatários ou senhores de engenho. Renascera capitalista, por seus caminhos corria dinheiro vivo, nada lhe perturbava a riqueza, tanta e tão acessível. No imaginário popular, Deus fora rebaixado a simples corretor da esperança que levaria o alugado à eminência da estátua dourada do Coronel, figura emblemática da bem-aventurança. Nelson Schaun e sua cidade eram amantes e contentes. Ele a tratava com a intimidade alegre e sem restrições do namorado nascido, criado, vivido e disposto a morrer ali onde bate seu coração e seu sangue reconhece cada esquina e seu rosto é reconhecido em todos os momentos por todas as pessoas.
De acordo com sua vocação de figura pública, ele se fez professor. Sua escola estava em toda parte, estava no mestre sempre disposto à lição. Na sala de sua morada com Vanja (nome raro, suave sussurro), primeira casa da rua do Sapo, a das moças sem maridos, mas com filhos, aos quais ele ensinou gratuitamente a “ler e escrever corretamente a língua portuguesa” (...). No bar do fim de tarde, era onde se tornava aluno da intimidade, apenas murmurada, com um sorriso maroto, dos segredos que todos saboreavam: o Maraú, do comandante italiano, havia chegado e apitara longamente para avisar a Cremilda, no alto de São Sebastião, que seria seu parceiro-coronel para a noite de amor; ou o afundamento do iate no gargalo da barra, de onde escapara a professorinha de Itapira, beata e virgem, passando graxa de sapato em todo o corpo para esgueirar-se pela vigia estreita - e a garotada se assanhara com a visão.
Sosígenes Costa nasceu na ponta sul da região, foz do Jequitinhonha e trouxe para Ilhéus todo o seu cabedal: o conhecimento dos sinais do sistema morse e uma bela caligrafia, bens úteis e requeridos dos telegrafistas. Aprendeu o Boudot, que imprimia em fitas estreitas de papel as mensagens telegráficas. Estes eram os laços mais estreitos que Sosígenes Costa mantinha com a comunidade, pois a ele cumpria ler, corrigir, cortar e colar nos formulários cumprimentos, ordens, pedidos, declarações sucintas, nascimentos e óbitos, e quanto mais lhe revelasse, na brevidade dessas comunicações, a vida da cidade. Ele preservava, rigorosamente, sem concessões, seu direito à privacidade, sua necessidade de comunicação tinha canais próprios, dispensava o contato físico e a conversação, câmbio de sentimentos e pensamentos. Raramente era visto em locais públicos. A caminho da agência do telégrafo, transitava por ruas pouco freqüentadas e, assim, quando retornava ao seu quarto-e-sala, improvisado num edifício comercial, sua oficina de trabalho noturno, onde fazia e refazia, numa escala de tempo muito particular, seu verso maravilhoso. Ilhéus era, também, a sua cidade, e ele seu produto, ali aprendeu, com rara percepção crítica, os motivos de sua poesia tão especial, sem parentesco a não ser, pela excelência da qualidade, com os poucos grandes poetas universais da língua. Ali aprendeu os ritmos populares das festas de largo, e reinventou a linguagem dos alugados. Sobre o longo poema da origem mítica da lavoura, esclarece: “Começa com versos livres, soltos como menino no pasto, pula num samba, emenda por um coco, cai de novo no samba e termina falando como a gente fala”.
Às tardes, na Associação Comercial, secretariava e reportava em atas formais, com sua letra cuidada e clara, as semanais reuniões da Diretoria. Nos outros dias, ele supervisionava o cuidado dos jardins da casa imponente, que ornamentava com flores raras, e tratava pessoalmente de algumas dezenas de gaiolas de passarinhos canoros, que os meninos da redondeza pegavam e lhe traziam, em troca de algumas moedas. A casa e a praça enchiam-se de trinados de canários, cardeais e pintassilgos. Um pássaro preto, que imitava o canto dos demais e repetia a primeira fase do Hino Nacional, andava atrás dele, esvoaçava pelas salas do andar superior e às vezes pousava na mesa grande das reuniões. À noite, quem passasse pela praça e os jardins diante da Prefeitura, ouvia, vindo do salão de festas da Associação Comercial, o som das músicas que o poeta tirava no piano de meia-cauda, entremeando peças clássicas e populares.
O mal dos deuses é terem fé nas criaturas que os criaram. Na região cacaueira, o sonho único da riqueza geral foi rapidamente burlado: o lavrador estabelecia a sua posse no meio da mata, plantava sua rocinha, vivia com a família da caça e da pesca abundantes. Certo dia, aparecia o fazendeiro, que havia comprado do governo, ao preço de um centavo o hectare, a terra devoluta. Pagava ao posseiro a benfeitoria feita ao chão, contratava-o para fazer uma roça muito maior e, quando a plantação começava a produzir, assumia a sua propriedade, pagando ao lavrador um tostão por árvore. A “operação” repetia-se muitas vezes, o lavrador alugava seu braço e sua intimidade com a lavra, vivia e morria miserável, sem dinheiro e sem terra, proibido de comer cacau, perdido de seu sonho.
Nelson Schaun e Sosígenes Costa, grapiúnas urbanos, sem machado ou foice para derrubar pau e ciscar o solo, um deles professor e extrovertido, o outro poeta e introvertido, pareciam não cruzar seus caminhos no espaço exíguo da cidade pequena. Uma vez, ao menos, estiveram juntos. Schaun reuniu seus poucos companheiros e, sem os cuidados que a situação de clandestinidade impunha ao seu sonho, estruturou o primeiro comitê do movimento comunista em toda a imensa região cacaueira. Durante algum tempo aquela mínima unidade orgânica foi sozinha na cidade de Ilhéus, sozinha no mundo inteiro. Vista desde hoje, sete décadas passadas, tão longínqua, é um pequeno e singelo momento da mais alta grandeza humana. O sonho era devolvido à população grapiúna, sonho antigo e desgastado, mas renovado em termos modernos, um século antes. Nelson Schaun gostaria de haver encerrado o ato simples com o verso oratório de um poeta de sua predileção (mas ainda por escrever): Um fantasma assombra a Europa, o mundo*/ Nós o chamamos Camarada.
Sosígenes Costa, infenso a reuniões de quaisquer tipos, soube do ocorrido e fez um pequeno poema, como se fosse ele o professor (leia o poema na pág. 8). Depois, muito depois, aqueles deuses simpáticos e benfazejos, que doaram aos grapiúnas a bênção do cacau, aborrecidos com tanto caxixe, fizeram uma breve reunião de controle da situação e resolveram mandar a praga da vassoura de bruxa dar fim à história.
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