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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Natal das Crianças Negras

             (Cyro de Mattos)

             
Eles moravam no morro, a irmã era chamada de Bel, o irmão de Nel.  Bel não recebia da vida a doçura feita com mel. E Nel não vivia a vida, lá no alto morro, como se estivesse no céu. A mãe deles chamava-se Maria. Vestia trajes simples, gastos pelo uso diário. Nunca vestiu um manto azul feito de seda para brilhar no dia, como se via na igreja com a imagem da Virgem Maria.  
A mãe de Bel e Nel era lavadeira. Tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana descia o caminho pelo barranco com a bacia de roupas sujas  na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a bacia de roupas em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. As pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, de repente apareciam coloridas naquele trecho do rio.     
O pai de Bel e Nel  chamava-se José, era carpinteiro. Sabia usar com habilidade  os  instrumentos de trabalho:  martelo,  serrote,  enxó,  plaina e  formão. Suas mãos pequenas faziam cadeira, mesa e banco. Consertavam porta, janela e portão. No mês que Bel completou seis anos de idade, o carpinteiro José começou a sentir  dores na espinha. Os ossos inflamados, as  mãos trêmulas, o corpo todo doía. À noite no quarto gemia. O coração dele foi diminuindo o amor que tinha por São José, o padroeiro da cidade, por causa da doença que o afligia. Até  que um dia o pai de Bel e Nel perdeu  para sempre sua constante fé em São José, o santo protetor dos carpinteiros.
O tempo de Natal era chegado. Nel queria um avião grande, Bel uma boneca que chora. Viram o velho gordo com o rosto rosado pela primeira vez na televisão da loja.  Carregava um saco de brinquedos nas costas. Tinha a barba branca e os cabelos sedosos. Vestia uma roupa vermelha. Calçava botas pretas. Numa das cenas em que aparecia na telinha, deixava escapar do rosto rosado um sorriso que transmitia uma sensação de alegria e paz a cada criança que ia falar com ele e receber o seu carinho.  Os meninos no passeio da  loja não tiravam os olhos da televisão. Comentavam que o velho  dava  brinquedos à criançada  sem  querer nada de volta. Eles sorriam quando o velho aparecia com as roupas folgadas na telinha. Olhinhos deles todos no querer, como que encantados cintilavam.
Com olhinhos espertos e risinhos que enchiam os dentinhos, Bel e Nel foram olhar a árvore enfeitada com bolinhas e luzinhas,  armada em um dos cantos da loja. À noite as luzinhas acendiam e apagavam. A estrela no alto comovia. Descobriram depois  o presépio em outro canto da loja, com os camponeses, pastores e bichos. Ficaram admirando  o pequeno estábulo do presépio, que tinha o teto coberto de folha  de palmeira. Um galo de crista vermelha estava  no telhado. Uma estrela brilhava na cumeeira, toda acesa de Deus. Nossa Senhora e São José mostravam os semblantes felizes, ao lado de  Jesuscristinho, que  dormia o sono bom no berço puro e quente, feito de palha.  E os três reis magos, ali no presépio,  davam a entender que não eram dignos de  tocar na palha onde Jesuscristinho  dormia o sono sereno.
 Sentados no meio-fio do passeio da loja, Bel e Nel escutavam agora a musiquinha  que saía alegre pelo alto-falante no poste. De vez em quando o alto-falante baixava o som. Então a   musiquinha fazia um fundo musical no mesmo instante em que entrava  a voz pausada do locutor.  A voz dele informava que  vinha de Belém a estrela mais bela. Fora trazida pelas mãos da maior madrugada. Seu brilho imenso descaía do céu e vinha iluminar a relva onde os bichos anunciavam e cantavam o nascimento do menino Jesus. A voz do locutor ficava emocionada quando comunicava  que naquele dia o menino pobre nascia no estábulo. Esse menino Deus  vinha para afugentar o mal de toda a terra. A voz doce  do locutor terminava  a mensagem de paz eterna com mais emoção no final quando então revelava que os sinos do mundo inteiro nessa hora  tocavam: É Natal! É Natal!
O alto-falante voltava a tocar a musiquinha alegre, acompanhada dessa vez  de uma cantiga cativante. Bel e Nel continuavam sentados no meio-fio do passeio. Recebiam  o sopro da brisa que circulava na rua, ao final do dia. A brisa suavizava os rostos deles dois em silêncio, enquanto seus pequenos corações eram tocados pela cantiga que se repetia e  começava assim:

Botei meu sapatinho
Na janela do quintal.
Papai Noel deixou
Meu presente de Natal...

Dizia a cantiga ainda mais, que o velhinho  sempre visitava  o quarto de cada menino onde  deixava, ali,  um brinquedo como  presente naquela noite especial. Seja rico, seja pobre, seja branco, seja preto, como  Bel e Nel, o velhinho sorridente e bondoso  não esquece de ninguém.
Bel e Nel colocaram os chinelos na janela do quarto. Nada acharam no outro dia. Do ponto mais alto do morro ficaram olhando as nuvens alvas, trafegando no céu como grandes almofadas. Umas nuvens menores desenhavam brinquedos enquanto iam passando  mansas diante dos olhos tristes deles dois.
Eles viam nesse instante a cidade lá embaixo, aos seus pés. Imaginavam a algazarra da manhã festiva. No passeio, no jardim, em qualquer canto da casa. Cada menino o brinquedo exibia. Saltava, dançava, corria, sonhava, voava, sorria.
Então souberam como o mundo dava as costas a Jesus. Não queria ver Maria. Escondia-se de José.  O Natal era a lágrima que pelo rosto deles dois  descia.
E uma canção desfazia.








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