Mãe
Otaciana
Um dia ouvi minha avó Ana dizer que uma mãe é para
cem filhos e cem filhos não são para uma mãe. A avó faladeira queria dizer que o amor de mãe é tão grande que não tem
tamanho. Minha avó teve nove filhos, três homens e seis mulheres, ainda criou
um neto. Gostava de falar com a sabedoria que anônima é recolhida das águas do
tempo. Muita coisa que ouvia minha avó falar só passei a compreender depois que me tornei um homem.
Se minha avó estivesse viva, eu ia
perguntar-lhe de que tamanho é o amor de uma mãe que teve mais de cem filhos,
um número incalculável de netos e bisnetos. Você sabia que houve nesta vida
essa mãe com tantos netos e bisnetos? Escute, vou lhe contar um pouco sobre a
vida dessa criatura, que a cidade nunca vai esquecer.
Otaciana Eráclia Ferreira Pinto pôs os
pés cedo na estrada deste mundo criado por Deus. Foi em Itabuna, cidade no sul
da Bahia, outrora de ricas plantações de cacau, que ela passou toda a sua vida.
Vida bem vivida, como gostava de dizer aquela criatura baixinha, enrugadinha,
incansável, de bons préstimos, estimada por gente rica e pobre.
Ela chegou à cidade no tempo em que o trem era uma coisa viva,
trazia de ilhéus peixe do mar, coco,
cordas de caju e caranguejo. A cidade tinha poucas ruas calçadas, chovia
muito, fazia lama em muitos trechos da rua do comércio. A iluminação era
precária, a companhia desligava o motor da energia elétrica antes de
meia-noite. Na cidade em que se fixou até os últimos dias, a professora nascida
em Arraial do Galeão ia seguir uma vocação diferente: a de “pegar” menino, numa
época em que parto na maternidade não era freqüente.
Pelas mãos de mãe Otaciana nasceram
homens e mulheres que construíram o progresso da cidade. Deus anunciou muitas
vezes o milagre da vida pelas mãos pacientes daquela criatura que tinha os
olhos pequenos. Mostrou essa flor que, no desenlace feliz, dava um susto
esplêndido. A criança era banhada a seguir, enxugada e levada para o calor do
seio.
Um dia, com aqueles olhinhos vivos, que
pareciam sorridentes quando falava, ela me contou como aconteceu o primeiro
parto que fez. Fora chamada à noite, o tempo estava escuro e chuvoso. Quase uma
adolescente, coração confiante, chegava à casa da parturiente, que passava mal.
Transcorridos aqueles minutos
primeiros, sempre lentos, de apreensão para os de casa, escutou-se, enfim, o
choro da criança dentro da noite fechada de chuva. O pai limpou com a manga da
camisa a turvação que ardia nos olhos. E observou contente: “Foi esse
calanguinho aí que deixou todo mundo aflito!” O coração adolescente de mãe
Oatciana surpreendeu-se com tanta felicidade de uma família humilde. A
professora sertaneja soube então que não ia mais ensinar a partir daquele
momento enquanto vivesse. Suas mãos
generosas iam cuidar dali para frente só de “pegar” menino.
Mãe Otaciana nunca foi política, mas se
elegeu duas vezes como vereadora pelo extinto Partido Social Democrático. Nunca
fez campanha, nunca compareceu a comício. Quando sabia, já estava eleita com
uma grande votação. Da última vez que a encontrei, ela tinha acabado de sair de
casa. Estava abrigada numa sombrinha estampada por causa do sol quente. Tomei a
bênção e lhe perguntei se começaria tudo de novo em seu trabalho de parteira.
Ela, sem hesitar, respondeu que sim, a voz baixinha, quase não se ouvindo.
Adiantou que era muita apegada a Deus. Nunca teve problema no seu ofício de
“pegar” menino. Sempre que um parto era difícil recorria a um médico, que lhe
dava uma ajuda, isso a fazia feliz. Encerrou a conversa com uma observação que, em sua verdade
cristalina, muita gente conhecia: “Na
vida trabalhei muito, meu filho. Perdi a conta de quantos meninos
aparei.”
Ela era uma criatura forte, embora
aparentasse fragilidade. Comovia a própria vida com seu espírito de abnegação e
renúncia quando se tratava de fazer um parto. Só consigo lembrá-la nessa hora
com a cabeça alva, mas lúcida, rumo à casa da parturiente. Encurvada, os olhinhos
sorridentes, convivendo com luas. Bem sabiam desses passos miúdos, que lhe
tinham dado na existência tantas estações carregadas de frutos.
Assim vejo mãe Otaciana, afeiçoada ao mistério da vida na surpresa de
ser, dizendo à mãe da criança que tinha sido
um menino. O pai alegre com a chegada do filho à casa que se cobriu de
incerteza durante a noite quente do verão. Com a madrugada que chegava nas
cores suaves, vejo também a criança, dormindo no seio da mãe o sono mais belo.
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