Cyro de Mattos
O Sul da Bahia vem se prestando ultimamente a estudos de historiadores,
geógrafos, sociólogos e escritores conceituados, já se notando, nessa altura,
uma bibliografia significativa, que preenche lacunas e amplia o conhecimento
sobre a história da Bahia. A historiografia baiana sempre privilegiou Salvador
e o Recôncavo com estudos históricos, sociais, de antropologia e culturais, não
dando a importância merecida aos acontecimentos, fatos, episódios, capítulos e
manifestações que marcaram o desenvolvimento de uma região rica com suas características próprias.
Entre os estudos que abordam fatos
históricos, sociais e culturais, contextualizados no sul da Bahia, cito aqui Os coronéis do cacau, de Gustavo Falcón,
Bahia cacaueira: um estudo de história recente,
de Angelina Rolim Garcez e Antonio Fernando Guerreiro de Freitas, Um lugar na história: a capitania e comarca
de Ilhéus antes do cacau, de Marcelo Henrique Dias e Ângelo Alves Carrrara (organizadores), A
memória do feminino no candomblé, Da porteira para fora: mundo de preto em
terra de branco, Mexigã e o contexto da escravidão, de Ruy Póvoas. Antes
da publicação das obras
mencionadas, devemos considerar, como
livros necessários aos que se interessam pelos assuntos da história regional, Mato
Virgem, do Príncipe Ferdinand Maximiliano von Habsburg, tradução de Moema Augel, Crônica da Capitania de São Jorge dos Ilhéus, de Silva Campos, Sul da Bahia: chão de cacau, de Adonias
Filho, e a antologia Memória de Ilhéus,
organizada por Fernando Sales, reunindo textos históricos.
Como estudo da Geografia Humana
inserida na memória citadina, ressalte-se O
centro da cidade de Itabuna: trajetória,
signos e significados, de Lurdes Bertol Rocha. Esta autora, em A Região Cacaueira da Bahia – dos coronéis à
vassoura-de-bruxa, contribui para a compreensão ampla de uma civilização com sua maneira singular de vida, ocupando
vasta área do território baiano. A
reflexão sobre as desigualdades sociais e culturais, o autoritarismo político,
a capacidade e persistência dos que estão na parte inferior da sociedade, a impulsionar
com dificuldades sua história, servem de argumento nos escritos de história
social no sul da Bahia, reunidos no
livro Entre o fruto e o ouro,
organizado por Philipe Murillo Santana de Carvalho e Erahsto Felício de Sousa.
O livro Viagem ao engenho de Santana (1), de Teresinha Marcis, é outro estudo importante da história regional situada
no sul da Bahia, resultando essa incursão, juntamente com um filme, de projeto
elaborado pelo laboratório de História e Geografia da Universidade Estadual de
Santa Cruz para as comemorações dos 500 Anos de Descobrimento do Brasil.
Centrado no Engenho de Santana, localizado no povoado do Rio de Engenho, sítio
remanescente dos mais importantes no Brasil Colônia, o estudo revela aspectos e eventos poucos conhecidos
da formação histórica da Região Cacaueira. Reconstitui um passado que
permaneceu ao longo dos anos numa nebulosa, em razão da carência de material e
pesquisas sobre o assunto.
A estrutura de Viagem ao engenho de Santana obedece ao desenvolvimento cronológico
dos acontecimentos, ligados direta ou indiretamente ao engenho. O estudo faz a
abordagem da chegada dos colonizadores com a ocupação das terras, o modelo de colonização
adotado. Revela a relação entre colonos e nativos, a estratégia imposta para a dominação.
Detecta a presença do elemento indígena, a descaracterização cultural,
resistência, fugas e levantes. Destaca a transcrição de Mem de Sá sobre a
Batalha dos Nadadores, na qual foi dizimada no mar uma grande quantidade de nativos.
Prosseguindo na viagem em torno de
um engenho de grande porte, pertencente a Mem de Sá, terceiro Governador Geral
do Brasil, que o implantou na capitania de São Jorge dos Ilhéus, em 1537, o
estudo alcança o período em que o
referido sítio foi propriedade dos
padres jesuítas. Descreve a sua reconstituição no dia-a-dia com a presença dos
escravos, sua histórica rebelião quando ocupavam o engenho em 1789 e escreveram uma carta de
reivindicação para negociar o retorno ao trabalho. O escravo apresenta-se neste
documento como agente de resistência e transformador da história, querendo ser menos objeto, buscando melhores
condições de vida, não aceitando a exploração na prestação desumana de serviços.
Vale lembrar que de mil escravos um sabia escrever na época da escravatura como forma de propriedade e produção no
Brasil.
Movido a energia hidráulica,
servindo de modelo aos fazendeiros regionais, que utilizavam extensa
mão-de-obra escrava, a produção do Engenho de Santana chegava a 10 mil arrobas
de açúcar anuais, comprovando-se dessa maneira um período de boa fase do
produto na Capitania. O engenho representava uma verdadeira povoação. O local
onde funcionou todo o complexo do engenho, com a casa de purgar e das moendas,
a roda d’água, senzalas e outras instalações, constitui atualmente um pequeno
povoado, habitado por famílias de gente humilde, trabalhadores rurais,
pescadores, lavadeiras e aposentados. Permanece em bom estado de conservação a
Igreja de Santana, uma das mais antigas do Brasil e que foi tombada pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia. Ruínas, histórias e lendas
perduram no imaginário dos moradores, principalmente no que dizem respeito à
existência da escravidão.
Baseado em documentação criteriosa,
com imagens que contribuem para ilustrar e enriquecer o texto, Viagem ao Engenho de Santana, de
Teresinha Marcis, demonstra mais uma vez como Ilhéus tem a ver com o Brasil
nascendo como nação. Frisa a autora que
a conclusão desse estudo apresenta-se como desafio a novas investigações, capazes
de aprofundar com outro olhar a leitura
crítica dos acontecimentos ali registrados.
1 – Viagem ao engenho de Santana, Teresinha Marcis, Editus, editora da
UESC, Ilhéus, 86 páginas, 2000.
CARTA
DE MEM DE SÁ AO REI DE PORTUGAL RELATANDO OS ACONTECIMENTOS QUE CULMINARAM COM
A BATALHA DOS NADADORES
“Neste
tempo veio recado ao governador como o gentio Tupiniquim da Capitania de Ilhéus
se alevantava e tinha morto muitos cristãos e destruído e queimado todos os
engenhos dos lugares e os moradores estão cercados e não comiam já senão
laranjas e logo o pus em conselhos e posto que muitos eram que não fosse por
ter poder para lhes resistir nem o poder do Imperador fui com pouco gente que
me seguiu e na noite que entrei em Ilhéus fui a pé dar em uma aldeia que estava
a sete léguas da vila em alto pequeno toda cercada de água ao redor de lagoas e
as passamos com muito trabalho e antes da manhã de duas horas dei na aldeia e a
destruí e matei todos os que quiseram resistir e a vinda vim queimando e
destruindo todas as aldeias que ficaram atrás e porque o gentio se ajuntou e me
veio seguindo ao longo da praia lhes fiz algumas ciladas e onde os cerquei e
lhes foi forçado deitarem a nado no mar da costa brava. Mandei outros índios
atrás deles e gente solta que os seguiram perto de duas léguas e lá no mar
pelejaram de maneira que nenhum Tupiniquim ficou vivo, e todos trouxeram e os
puseram ao longo da praia por ordem que tomavam os corpos perto de meia
légua... ¨ (No livro ¨Viagem ao Engenho de Santana¨, transcrito de Varnhagen,
1956, Tomo I, p.315).
CARTA
ESCRITA PELOS ESCRAVOS DO ENGENHO DE SANTANA
“Meu
senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor quiser paz, há de
ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos a saber.
Em
cada semana nos há de dar os dias de sexta-feira e de Sábado para trabalharmos
para nós não tirando um destes dias por causa de dia santo.
Para
podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas.
Não
nos há de obrigar a fazer camboas, nem a mariscar, e quando quiser fazer
camboas e mariscar mandes os seus pretos Minas.
Para
o seu sustento tenha lancha de pescaria ou canoas do alto, e quando quiser
comer mariscos Mandes os seus pretos Minas.
Faça
uma barca grande para quando for para a Bahia nós metermos as nossas cargas
para não pagarmos frete.
Na
planta da mandioca, os homens queremos que só tenham tarefa de duas mãos e meia
e as mulheres de duas mãos.
A
farinha há de ser de cinco alqueires rasos, pondo arrancadores bastantes para
estes servirem de pendurarem os tapetes. A madeira que serrar com serra de mão,
embaixo hão de serrar três, e um em cima. A medida de lenha há de ser como aqui
se praticava, para cada medida um cortador, e uma mulher para carregadeira.
A
tarefa de cana há de ser de cinco mãos e não de seis, e a dez canas em cada
freixe.
No
barco há de por quatro varas, e um para o leme, e um no leme puxa muito por
nós.
Os
marinheiros que andam na lancha além de camisa de baeta que se lhe dá, hão de
ter gibão de baeta, e todo vestuário necessário.
Os
atuais feitores não os queremos, faça eleição de outros com a nossa aprovação.
Nas
moendas há de de por quatro moedeiras, e duas guindas e carcanha.
Em
cada caldeira há de haver botador de fogo, e em cada terno de faixas o mesmo, e
no dia d e Sábado há de haver remediavelmente peija no Engenho.
O
Canavial do Jabirú o iremos aproveitar por esta vez, e depois há de ficar para
pasto porque não podemos andar tirando canas por entre mangues.
Poderemos
plantar nosso arroz onde quisermos e em qualquer brejo sem que para isso
peçamos licença, e poderemos cada um tirar jacarandás ou qualquer pau sem
darmos parte para isso.
A
estar por todos os artigos acima, e conceder-se estar sempre de posse da
ferramenta, estamos prontos para o servimos com dantes, porque não queremos
seguir os maus costumes dos mais Engenhos.
Poderemos
brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos empeça e
nem seja preciso licença.” ( No livro “Viagem ao Engenho de Santana”,
transcrição do texto original in: REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação
e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista, 1989).
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