Edições LETRASELVAGEM e CASA DAS ROSAS convidam para o lançamento
dos seguintes livros:
1) “Poeira e Escuridão”, de João Batista de Andrade (contos)
2) “O Tribunal”, de Álvaro Alves de Faria (romance)
3) “Os Vira-Latas da Madrugada”, de Adelto Gonçalves (romance)
Local: CASA DAS ROSAS (Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura),
Av. Paulista, 37 (Metrô Brigadeiro) - São Paulo / SP / Brasil.
Data: 18 de agosto de 2015 (terça-feira), às 19h30. Entrada Franca.
* Precedendo à sessão de autógrafos, os três autores (que ambientaram as suas narrativas no sombrio e asfixiante período
da Ditadura Militar de 1964) serão apresentados ao público pelo crítico FÁBIO LUCAS, o qual também fará breve escorço
a respeito do tema “Literatura e Liberdade”.
SOBRE OS AUTORES/OBRAS:
1º) João Batista de Andrade / "Poeira e Escuridão" (contos):
João Batista de Andrade
nasceu na cidade mineira de Ituiutaba, em 1939, e vivenciou complexos
momentos da recente história do Brasil, como o período da Ditadura
Militar (1964-1985).
Leitor
inveterado desde a adolescência, quando escreve os seus primeiros
contos, torna-se conhecido nacional e internacionalmente, entretanto, ao
desenvolver notável carreira de cineasta, tendo realizado filmes de
ficção e documentários que impactaram a crítica e o público, como, por
exemplo, “Doramundo” (Vencedor do Festival de Gramado /1978), “O homem
que virou suco” (Medalha de Ouro de Melhor Filme no Festival de
Moscou/1981), “O Tronco” (Prêmio de Melhor Filme pela Comissão das
Comemorações dos 500 anos de Brasil, no Festival de Brasília/1999) e
“Vlado, 30 anos depois” (2005).
Premiado
e aclamado como cineasta, sempre alimentou entranhada relação com a
literatura, que se manifesta em sua filmografia, quer na urdidura dos
roteiros, quer na transposição para as telas de obras literárias, como
os romances Doramundo (Geraldo Ferraz), Veias e Vinhos (Miguel Jorge) e O Tronco (Bernardo
Élis). Enquanto colhe louros como cineasta, vai publicando os seus
livros, sete até este momento (o último intitula-se Confinados: memórias de um tempo sem saídas).
Militante
do PCB (Partido Comunista Brasileiro) nos chamados “anos de chumbo” da
Ditadura Militar implantada no Brasil em 1964, João Batista de Andrade —
cineasta, jornalista ou escritor — apresenta um olhar crítico sobre os
(des)caminhos trilhados pela sociedade brasileira. Conforme escreveu
Rodrigo Francisco Dias, mestre em História pela UFU (Universidade
Federal de Uberlândia): “Andrade explora os complexos aspectos
psicológicos de seus personagens e nos apresenta a sua visão acerca do
Brasil contemporâneo.”
Ao
misturar realidade e ficção, é possível perceber pontos de contato
entre a história de vida do autor e as histórias de seus personagens,
como a do velho arquiteto Júlio, um homem em crise que sofre com sua
solidão (Confinados).
A sensação de solidão, aliás, é elemento importante em toda a arte de João Batista de Andrade. Em Poeira e Escuridão, ora publicado pela LetraSelvagem,
os personagens também aparecem “confinados” pela cruel realidade de um
mundo onde as pessoas não conseguem encontrar no tempo presente a
realização de projetos e sonhos do passado, resultando dessa situação um
sentimento de impotência — o mesmo sentimento que o autor deve ter
experimentado em 1989, quando, desiludido com a situação do país sob o
famigerado Plano Collor, interrompe sua carreira de forma drástica e se
auto-exila no interior brasileiro, só retornando ao set de
filmagens oito anos depois, com o épico “O Tronco”. João Batista de
Andrade nos mostra como podemos, ao mesmo tempo, identificar-nos com a
realidade e não nos prendermos a ela. Seus romances e contos cheiram a
terra, sangue, lágrimas e suor, numa perfeita assimilação do mundo que o
rodeia, e não obstante rompem os limites desse mundo para elevar-nos à
universalidade da poesia humana, inespacial e atemporal. A memória e a
ternura são os dois elementos fundamentais dessa alquimia psíquica, os
elementos de captação e transfiguração do real, de que João Batista de
Andrade se serviu em toda a sua obra, como ficcionista ou não.
Sempre
ligado às lutas em prol da cultura brasileira, criou, como Secretário
Estadual de Cultura de São Paulo, a Lei da Cultura (PROAC). Eleito
Intelectual do Ano em 2014, recebeu o tradicionalíssimo Troféu Juca
Pato, oferecido anualmente pela UBE (União Brasileira de Escritores) a
uma personalidade do universo cultural cuja obra tenha promovido
relevante reflexão, característica marcante da atuação de João Batista
de Andrade, quer no cinema, quer na Literatura. Atualmente, preside em
São Paulo o Memorial da América Latina.
2º) Álvaro Alves de Faria / "O Tribunal" (romance):
Já em 1971, ano da primeira edição de O tribunal,
Álvaro Alves de Faria, com apenas 31 anos de idade (nasceu em São Paulo
em 09.02.1942), era considerado “um dos escritores jovens mais
conceituados” do Brasil, como informa Durval Monteiro nas orelhas do
livro.
Iniciou, em 1965, o movimento de recitais públicos nas ruas e praças de São Paulo, quando lançou o livro O sermão do viaduto,
um comício poético em pleno Viaduto do Chá, então o cartão-postal da
cidade. Com um microfone e quatro alto-falantes realizou nove recitais
no local e essa atividade evidentemente desagradou aos militares que
haviam usurpado o poder em 1964.
Em
1966, os recitais poéticos foram proibidos, mas Álvaro Alves de Faria
já fora preso cinco vezes como “subversivo” pelo DOPS (Departamento de
Ordem Pública e Social). Voltou a ser preso em 1969, por desenhar os
cartazes do então clandestino PSB (Partido Socialista Brasileiro).
Nesse período, firma-se como poeta, ao publicar os seguintes livros: Nocturno maior (1963), Tempo final (1964) e Sermão do viaduto (1965).
Com
o fim dos recitais públicos, Álvaro Alves de Faria concentra-se numa
intensa atividade poética — que também era essencialmente política — por
meio de recitais de poemas em colégios, ginásios e faculdades, e, ao
mesmo tempo, vai ruminando novos livros. É dessa época O tribunal,
sua primeira incursão pela prosa de ficção. Nas orelhas da 1ª edição,
Durval Monteiro, colega de jornalismo e amigo de infância do escritor,
informa como se gestou o livro:
“Está aí O tribunal,
depois de sete anos de isolamento. (...) Eu vi o livro nascer, crescer
dia a dia, palavra por palavra, silêncio por silêncio. Acompanhei todo o
trabalho de estruturação deste livro e senti a preocupação terrível de
um poeta, de um escritor diante de sua obra, de seu depoimento. E sei
que o Álvaro, como homem, como seu próprio personagem, está presente em
todos os momentos deste livro. Com seus cabelos compridos (isso é
importante?), sua angústia, sua visão profundamente caótica do mundo. Na
verdade, eu sei, O tribunal é a opção de Álvaro em relação à própria literatura. É uma palavra de coerência do começo ao fim do livro.”
E
o amigo de infância continua: “Ele se propõe (e isso não é novo nele) a
ser um escritor marginalizado. Consegue. Ele, tenho certeza, continuará
falando das coisas que vivem dentro de si, marginalizado ante o caos do
século, numa difícil e jovem linguagem que não ficará perdida na
confusão dos nossos dias: ele não está falando sozinho. Estas coisas
todas, não é absurdo dizer, serão analisadas mais tarde, à luz da
História.”
Álvaro
Alves de Faria é um daqueles autores cada vez mais raros, que têm um
compromisso com a Literatura. Tem uma “verdade” a dizer. Uma verdade
quase toda vivenciada. A tortura e morte são duas personagens que
rondaram a sua existência, deixando amargas lembranças, que o artista,
com a sua “alma gentil”, procura afastar do caminho. E, para dizer essa
verdade, lança mão de todos os recursos e todos os gêneros literários,
com o mesmo zelo e profundidade.
O tribunal
não é propriamente o que se poderia chamar de “um livro brasileiro”.
Poderia ter sido escrito em São Paulo (como o foi), Paris, Tóquio, Nova
York ou em qualquer cidade do mundo. Uma coisa universal. É isso que
está interessando, conforme disse o próprio escritor ao seu amigo de
infância.
Em 1973, lança Quatro cantos de pavor e Alguns poemas desesperados. Também em 1973: Augusto dos Anjos, poeta e cidadão brasileiro (teatro, com Rofran Fernandes, encenada em várias capitais brasileiras).
Em 1976, aparece outra novela, O defunto — uma história brasileira (Ed.
Símbolo), mais um texto contundente e visceral, que mostra um tempo de
violência e desencanto, de mortes, angústia e desespero, em que o homem é
massacrado em cada gesto, sem nenhuma perspectiva diante do clima que
então se apresentava no Brasil e no mundo.
Também em 1976 surge a 2ª edição de O tribunal, trazendo o consagrador prefácio de Geraldo Galvão Ferraz, onde este afirma:
“O
Tribunal mostra um personagem que avança pelos meandros de uma selva
escura, através de barbáries e miséria, lutando pela consolação desse
sentimento positivo — o amor. Mas esse internar-se pelo labirinto é
elaborado por um espírito penetrante e talentoso, resultando daí esse
livro, representativo da melhor literatura que se faz no Brasil. E, mais
do que nada, um livro que provoca, perturba e faz pensar. O que pode
haver de mais importante numa obra de arte?”
Seguem-se novos livros, em diversos gêneros: Em legítima defesa (poesia/1978), A faca no ventre, (romance/1979), A noiva da avenida Brasil (crônicas/1981), Motivos alheios (poesia/1983),
Em 1986, com a mesma força de expressão e contundência estilística, retorna ao romance, com Autopsia, editado pela Traço Editora e avalizado com a participação de José Louzeiro, autor do texto de orelhas, onde afirma:
“Mas,
afinal, o tema central desta obra do poeta Álvaro Alves de Faria é o
homem e suas contradições, angústias e perplexidades, diante de um mundo
sem alternativas, de ideias doentes e ferimentos abertos. Esse tempo
talvez seja passado, mas é inegável que ainda estão entre nós seus
vestígios e essas marcas de muitas feridas abertas na violência, no
esmagamento dos direitos fundamentais da vida humana.
O
romance nos passa diante dos olhos como um filme sinistro, feito de
fatos que, muitas vezes, ultrapassam a própria realidade, para desabar
pesadamente onde a vida se torna totalmente impotente diante dos
massacres, a impotência ainda lúcida de não se saber o que é a loucura
ou a angústia de enlouquecer.
Autópsia
é um livro dramático retratando um tempo brasileiro de desespero, com
uma linguagem sempre caminhando lado a lado com a poesia. Depois de dez
anos, Autópsia salta da gaveta como um dilacerante grito de dor.”
Com
efeito, num período da História brasileira em que tanto se precisava
ouvir as vozes dos encarcerados e emparedados pela truculência militar, Autópsia, inexplicavelmente (seria mesmo inexplicável?), permaneceu
engavetado por dez anos até que veio a lume, em 1986. E o escritor e
jornalista Renato Pompeu (1941-2014), que assinou o prefacio, se
pergunta: “Por que o romance de Faria — autor bem conhecido, de vários
outros livros — teve dificuldade para ser editado? Seria por ser crítico
em face das autoridades? Seria por ser crítico em face dos militantes?”
Autópsia
é uma poderosa narrativa-documento de um tempo de sombras e de morte,
em que insidiosos e cruéis “insetos” se alimentam de carne humana. Os
insetos odeiam a luz. A tarde está cheia de insetos e aracnídeos. Mas
essa novela de Álvaro Alves de Faria também joga luz sobre o ambiente
abafado das redações dos grandes jornais brasileiros, numa época de
censura. A morte, com seus múltiplos tentáculos, aniquila corpos e
mentes.
A resposta à pergunta de Renato Pompeu salta com força e clareza: Autópsia
— “esse romance a um tempo belo e militante” — foi longe demais ao
revelar as entranhas de um sistema apodrecido e degenerado e, ao mesmo
tempo, manter-se crítico em relação aos que, na sociedade civil
manietada, quedaram-se omissos ou rastejantes diante do poder.
Depois disso, publicou os seguintes livros de poesia: Lindas mulheres mortas (1990), O azul irremediável (1992), Pequena antologia poética (1996), Gesto nulo (1998), Agrário (1998), Terminal (1999), 20 poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999). Volta ao romance em 1994: Dias perversos.
Descendente
de portugueses e com sua “alma estrangeira”, há quinze anos que se
dedica à poesia de Portugal, país onde tem 11 livros publicados: Vinte poemas quase líricos e algumas canções para Coimbra (1999), Poemas portugueses (2002), Sete anos de pastor (2005), A memória do pai (2006), Inês (2007), Livro de Sophia (2008), Este gosto de sal — mar português (2010), Cartas de abril para Júlia (2010), Três sentimentos em Idanha e outros poemas portugueses (2011), O tocador de flauta (2012), Almaflita (2013).
Em 2012, volta a publicar um livro no Brasil (Domitila — poema-romance para a Marquesa de Santos, Ed. Nova Alexandria, SP).
Como
jornalista, dedicou-se à área cultural, em especial na crítica
literária em jornais, revistas, rádio e televisão. Por seu trabalho
recebeu, em 1976 e 1983, o Prêmio Jabuti de Literatura da CBL (Câmara
Brasileira do Livro).
3º) Adelto Gonçalves / "Os Vira-Latas da Madrugada" (romance):
Adelto
Gonçalves Nasceu a 16.10.1951 em Santos, cidade portuária do Estado de
São Paulo, Brasil. Filho de pais de modesta condição, fez os estudos
primários na escola mantida pelo Sindicato dos Operários Portuários de
Santos. Com a morte do pai, para continuar os estudos, exerceu pequenos
ofícios. Em 1972, quando cursava o segundo ano da Faculdade de
Comunicação da Universidade Católica de Santos, iniciou, na mesma
cidade, bem-sucedida carreira no jornalismo no jornal “Cidade de Santos”
e, em seguida, em “A Tribuna”. Em 1975, vai para São Paulo, onde exerce
a função de redator na Editoria de Política & Diplomacia em “O
Estado de S. Paulo”. Em 1980, retorna a “A Tribuna”, de Santos. Voltou a
trabalhar em “O Estado de S. Paulo”, de 1988 a 1992, depois de uma
passagem pela “Revista Placar”, da Editora Abril, em 1987, e pela “Folha
da Tarde” (SP), em 1988.
Estreou na literatura em 1977, com Mariela morta (contos).
Os vira-latas da madrugada foi
escrito quando Adelto Gonçalves tinha 18/19 anos e ficou um bom tempo
no fundo da gaveta, até ser reescrito em 1977/78. Em 1980, o romance
ganhou Menção Honrosa no Prêmio Nacional José Lins do Rego, da Livraria
José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, e, como resultado da premiação,
foi publicado no ano seguinte.
Jornalista,
escritor, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na
área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana
pela Universidade de São Paulo (USP), professor em estabelecimentos do
ensino superior e crítico literário, Adelto Gonçalves é, também, autor
de vários livros, que vão do ensaio à literatura de ficção. Os vira-latas da madrugada é um capítulo especial em sua bibliografia.
A
história se passa às margens do cais santista com personagens que fazem
rememorações da época do tenentismo da Coluna Prestes, passam pela
Época Vargas e chegam até o período pré-golpe de 1964, onde efetivamente
se passa a narração, e tem como pano de fundo a vida sindical. Em
primeiro plano, personagens que vivem entre o bairro Paquetá e a zona
central da cidade, região decadente, como decadente é a vida dos
personagens que por ali deambulam: ex-sindicalistas, punguistas,
jornaleiros, vendedores de jogo do bicho, catadores de restos que caem
no transporte antes de chegar aos navios, mendigos, engraxates,
cafetinas, cafetões, prostitutas e jovens aprendizes de todo tipo de
expediente. Um dos aspectos surpreendentes do romance é a maneira
detida, detalhada e verossímil com que o autor tece o enredo,
demonstrando total segurança e grande afinidade com o universo
existencial e psicológico dos personagens, isso com apenas 18/19 anos de
idade, o que leva o leitor a se perguntar sobre o que teria permitido
esse prodígio?
Em
artigo publicado pelo semanário “Jornal Opção”, de Goiânia, nº 2021, de
30.03.2014 a 5.04.2014, e no site do jornal russo “Pravda” (Verdade),
em 25.03.2014, intitulado “O golpe visto da janela de minha casa”,
Adelto Gonçalves rememora a tenebrosa época em que escreveu o romance e
oferece informações sobre a sua vida que, pelo menos em parte, respondem
a essa interrogação.
O
escritor diz, nesse artigo, que, com 12 anos de idade, assistiu ao
golpe militar de 1964 da janela de sua casa. A morada de seus pais era
no Largo Teresa Cristina, 27, defronte para o prédio do Sindicato dos
Operários Portuários de Santos, localizado à Rua General Câmara, cuja
lateral direita dava para a praça. Foi por ali que chegaram os soldados
da Polícia Marítima, do comandante Seco, ostensivamente armados. Da
janela, o menino Adelto viu como alguns daqueles homens de uniforme azul
com metralhadoras em punho e longos bastões — que no cais eram mais
conhecidos como “pés de mesa” — escalaram o muro dos fundos do
sindicato, assumindo posições estratégicas.
Depois,
ouviu o estilhaçar de uma vidraça do edifício do sindicato, talvez
rompida por uma granada de efeito moral ou uma pedra. E, então, percebeu
algumas poucas cabeças que se desenhavam nas vidraças: eram os
dirigentes do sindicato acuados, provavelmente à espera de notícias que
pudessem vir de Brasília sobre um eventual esquema de resistência ao
golpe.
Mais
tarde, ainda da janela, o menino percebeu uma aglomeração na Rua
General Câmara com o Largo. Então, tomou coragem e desceu à rua e viu
quando alguns daqueles homens que estavam acuados na parte de cima do
sindicato desceram as escadarias, sob a mira de metralhadoras, e
entraram numa espécie de “corredor polonês” aos tapas e pescoções em
direção a um caminhão coberto. Entre eles, lembra-se de ter visto Manoel
de Almeida, que era o presidente do sindicato, e Rafael Babunovitch,
diretor. Com outros diretores e alguns associados solidários, seriam
conduzidos para o navio-prisão, que por muitos dias ficaria ancorado em
frente ao porto de Santos com sua presença ameaçadora, tal como uma
forca na praça principal de uma pequena cidade.
Adelto
diz, ainda, não saber por que aqueles acontecimentos se davam, mas a
sua solidariedade era para com aqueles que eram agredidos a caminho do
caminhão. Em 1961, havia se formado na escola primária do Sindicato dos
Operários Portuários, com 10 anos de idade. Ingressara na escola não
porque seu pai trabalhasse na Companhia Docas, mas porque ela ficava
perto de casa e um amigo da família, portuário, havia se proposto a
apresentá-lo como seu sobrinho, de modo que houve um arranjo para
superar as normas, já que a escola, a princípio, só poderia ser cursada
por filhos de portuários. E o pai de Adelto era dono de um pequeno
armazém de conserto de sacaria de café na Rua Tuiuti, 34, na beira do
cais do Valongo.
Adelto
saiu daquela escola como um de seus melhores alunos. Ao final de 1961,
o então presidente da República, João Goulart (1919-1976), fez uma
visita ao sindicato e, na ocasião, cumprimentou uns três ou quatro
daqueles alunos que haviam recebido medalha de aplicação ou de honra ao
mérito. Adelto foi um deles. Diz lembrar-se, até hoje, do cumprimento
dado pela mão suarenta do presidente.
Naquele
ano de 1964, Adelto Gonçalves cursava o segundo ano ginasial no Colégio
Comercial Coelho Neto e assistira, indiferente, à pregação de uma
professora que costumava angariar adeptos para as manifestações que a
União Cívica Feminina organizava contra o governo Goulart. Até porque
não nutria nenhuma simpatia por aquela gente.
Por
acaso, também sem sair de casa, o menino Adelto conhecera o prefeito de
Santos, José Gomes (1920-1974), que teria o seu mandato cassado depois
do golpe: via-o frequentemente cruzar o Largo Teresa Cristina em direção
à Rua General Câmara a caminho de seu trabalho na Rádio Cacique, onde
apresentava um programa. Certa vez, o prefeito, com seu cabelo ruivo e
voz tonitruante, parou à janela do porão da casa de Adelto encantado com
a vitalidade de seu cachorro, o Rick, e fez-lhe algumas perguntas a respeito do cão.
Era
natural que, anos mais tarde, quando Adelto tinha 17 ou 18 anos de
idade e sentou-se para escrever num caderno escolar os primeiros
apontamentos para o romance Os vira-latas da madrugada, ainda
no porão daquela casa do Largo Teresa Cristina, se sentisse impulsionado
por muitas dessas lembranças. Tanto Almeida como Babunovitch, “o homem
de bochechas vermelhas” e que “parecia ter uma batata quente na boca
quando falava”, são personagens que aparecem disfarçados, ao lado de
tantos outros, naquele romance que reescreveu, dez anos mais tarde, à
época em que era subeditor de Política na redação do jornal “O Estado de
S. Paulo”.
O trabalho, a um tempo de memória e pesquisa, presente em Os vira-latas da madrugada, fez
com que o jornalista e escritor Marcos Faerman (1943-1999), professor
na tradicional Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero, apaixonado pelo
“jornalismo literário” e estudioso da relação entre o texto jornalístico
e as técnicas narrativas, enquadrasse a obra na categoria
“romance-reportagem” e indicasse-a numa lista de cem livros de leitura
obrigatória a alunos de jornalismo ou postulantes ao ambicionado mas
difícil ofício de “escritor”.
A lista de Marcos Faerman é encabeçada por A sangue frio (Truman Capote) e contempla outras obras-primas da literatura universal, como, por exemplo, Honrados mafiosos (Gay Talese, 2º da lista), Décadas púrpuras (Tom Wolfe, 5º), México rebelde (John Reed, 7º), Casa de loucos (João Antonio, 9º).
Os vira-latas da madrugada aparece em 10º lugar nessa lista, antes de clássicos como Moby Dick (Herman Melville, 11º), A ilha do tesouro (Robert Louis Stevenson, 12º), O lobo do mar (Jack London, 13º), Recordação da casa dos mortos (Dostoiévski, 22º), Tempo de morrer (Ernest Hemingway, 27º), Nada de novo no front (Erich Marie Remarch, 28º), A peste (Albert Camus, 29º), As vinhas da ira (John Steinbeck, 34º) e David Corpperfield (Charles Dickens, 37º).
Ainda no texto do “Jornal Opção” e do “Pravda”, Adelto relembra um fato que marcou a publicação da 1ª edição de Os vira-latas da madrugada e
que só agora, trinta e quatro anos depois, o público tomará
conhecimento do mesmo por inteiro, ganhando esta 2ª edição um
significado novo, de verdadeiro ato insurrecto contra a castração das
liberdades promovida pelos regimes totalitários — pois, como se verá, o Os vira-latas da madrugada foi uma das tantas vítimas da ditadura militar que à época infelicitava o nosso país.
Vamos ao fato:
Lançado
na sede da editora no dia 30 de abril de 1981, juntamente com outras
obras premiadas pela comissão julgadora, o livro trazia um prefácio no
qual o jornalista Marcos Faerman dizia que aquele “romance de sons
delicados e histórias tristes” não agradaria “àqueles que venceram em
1964”. Àquele lançamento coletivo estiveram presentes os ex-ministros
Darci Ribeiro (1922-1997) e Eduardo Portela, o compositor Tom Jobim
(1927-1994), cuja irmã Helena ganhara o prêmio principal do concurso, e
ninguém menos que Luís Carlos Prestes (1898-1990), o Cavaleiro da Esperança, por sinal, também personagem ocasional de Os vira-latas da madrugada.
Adelto
relembra que, naquela noite, “houve uma bomba que explodiu no RioCentro
antes da hora e fez gorar uma tragédia que poderia ter provocado muitas
vítimas.”
Esse
episódio, provavelmente, somado às dificuldades financeiras que puseram
a editora sob intervenção do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE), foi a causa de a edição ter sido recolhida à gráfica e
o livro distribuído sem o prefácio.
Trechos
do prefácio de Marcos Faerman foram publicados no semanário “Movimento”
(São Paulo, edição de 1 a 7 de junho de 1981, página 15), com o título
“Horror na beira do cais” e a seguinte linha final: “Trechos de um
prefácio censurado, sobre tempos nublosos...”. Na abertura, em texto que
se pode atribuir à redação, lê-se: “O porto de Santos foi palco de
grandes manifestações de massa nos anos que precederam a deposição do
presidente João Goulart, em 1964, por isso mesmo, assistiu à violenta
repressão depois do golpe militar de abril. Essa história constitui o
pano de fundo do romance Os vira-latas da madrugada, do
jornalista Adelto Gonçalves, recentemente publicado pela Livraria José
Olympio Editora. Tudo indica que os acontecimentos posteriores ao golpe
militar ainda incomodam aqueles que, de uma forma ou de outra, foram
responsáveis por eles. Assim, Os vira-latas da madrugada,
publicado por uma editora que está sob intervenção do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE), acabou saindo sem o prefácio que fora
preparado pelo jornalista Marcos Faerman, embora tenha sido impresso e
encadernado normalmente. Ele teria sido proibido por ordem direta do
interventor militar na editora, e foi arrancado de todos os exemplares. O
prefácio foi vetado por problemas técnicos. Essa foi a explicação do
editor Ivan Cavalcanti Proença, que prometeu uma nova edição, em alguns
meses, incluindo o prefácio. Entretanto, apesar de desmentir qualquer
conotação política no veto, Proença faz questão de frisar que a José
Olympio é uma editora em situação peculiar, insinuando que a intervenção
do BNDE não lhe permite total autonomia operacional.”
Como prova da auto-censura, um exemplar com o prefácio “subversivo” foi guardado por Adelto Gonçalves.
Seguindo
o ideário ético filosófico de Fernando Pessoa, para quem “a função da
arte é revelar o oculto e elevar a alma acima de tudo que é mesquinho”, a
LetraSelvagem resolveu reeditar Os vira-latas da madrugada,
cuja 1ª edição encontra-se há décadas esgotada, dando às novas gerações
de leitores a oportunidade de acesso a essa narrativa realizada com
técnica e alma, recolocando em seu merecido lugar o censurado prefácio
de Marcos Faerman, o qual, da gaveta onde os inquisidores o sepultaram,
clamou para vir à luz, não como explosão de pólvora e chumbo a
amedrontar cidadãos indefesos, como fazem as ditaduras, mas como um
potente raio, descarga de luz, irretorquível libelo capaz de ferir
insensibilidades e despertar consciências.
Adelto Gonçalves é autor, entre outros, de Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Universidade Santa Cecília, 1997, ensaios e artigos), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999, romance; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage — o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003, ensaio biográfico) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio
de Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2012, ensaio biográfico), entre outros. Em 1986, obteve o
Prêmio Fernando Pessoa da Fundação Cultural Brasil-Portugal, do Rio de
Janeiro, participando do livro Ensaios sobre Fernando Pessoa com o trabalho “O ideal político de Fernando Pessoa”, publicado também em Fernando Pessoa: a voz de Deus.
Conquistou os prêmios Assis Chateaubriand de 1987 e Aníbal Freire de
1994, ambos da Academia Brasileira de Letras. Seu trabalho de doutorado
Gonzaga, um poeta do Iluminismo, sobre Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810), publicado em 2000 pela Editora Nova Fronteira, do Rio de
Janeiro, ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios da União Brasileira de
Escritores e da Academia Carioca de Letras.
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