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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Um Construtor de Pontes Literárias



                             
                                                          Cyro de Mattos
           
Curt  Meyer-Clason nasceu em 19 de setembro de 1910, em Ludwigsburg, cidade próxima a Stuttgart, no sudoeste da  Alemanha.  Contista, romancista, autor de diários, ensaísta,  conferencista, editor   e tradutor. Como autor publicou quinze livros  e, entre eles,  Equador, romance biográfico no qual narra a ausência de identidade pessoal em uma  juventude sem rumo,  em razão do período sombrio que passara a Alemanha no fim do século 19 e princípio do século 20. Sua correspondência com autores que traduziu forma um legado precioso, que dará grossos volumes quando publicada e ajudará a compreensão de sua obra.  
           A orquestração do destino quis que Curt Meyer-Clason  ficasse notabilizado como tradutor. Ele foi  o maior divulgador da literatura brasileira, portuguesa e latino-americana na Europa, tendo começado suas atividades de tradutor logo após a  Segunda Guerra Mundial. A lista completa de autores consagrados que traduziu  ultrapassa mais de 150 títulos. Esse construtor de pontes literárias traduziu para o alemão obras seminais e, entre elas,  “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez.
Seus ancestrais pertenciam à nobreza. O pai era oficial no exército prussiano. Depois de completar o ginásio em Stuttgart,  Curt   Meyer-Clason  matriculou-se numa escola de co­mércio. Focado no desejo de exercer a vida no comércio,  seguiu para o norte da Alemanha. Em Bremen encontrou trabalho numa firma americana que atuava no ramo de importação de algodão e tinha filial em Le Havre. O jovem empregado havia aprendido  a “classificar algodão” e nessa época  já do­minava o inglês e o francês. Isso lhe deu  condições de se tornar   o  encarregado  da correspondência da empresa. Nesse  tipo de trabalho teve a oportunidade  de viajar   com frequência entre Bremen e Le Havre.  A empresa enviou-o ao Brasil onde passou a  trabalhar em São Paulo como “controlador de algodão”. Nesta função conheceu os mais importantes portos brasileiros, além de passar longos períodos na Argentina.

  Radicou-se em Porto Alegre onde  dirigiu uma empresa fabricante de móveis. Em pouco tempo se tornou  pessoa conhecida  na sociedade local. Desfrutava os prazeres que seu novo ambiente oferecia. Era jovem e atraente.  Possuía um automóvel conversível, o que era raro em sua idade e  uma prova de seu reconhecido status. Mais tarde, em uma de suas entrevistas, Meyer-Clason, referiu-se àquela época, dizendo: “Naqueles tempos eu era um dandy. Adorava três coisas: moças bonitas, gravatas e tênis”.

            Do lado de lá,   a Segun­da Guerra expandia-se, o bem e o mal coexistiam  numa vizinhança das mais imprevisíveis quanto mais niilista. O mal não tinha  limite.  Corpos de pessoas eram  usados para experiências absurdas. Almas  sem clamor e pequenos corações  viviam  aterrorizados sob a expectativa de que só iriam  sair dos campos de extermínio  pela chaminé reduzidos a cinzas. Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, crateras, escombros. Na  enchente a morte. Tudo acontecia  de maneira imperturbável. A fera ressurgia da antiga caverna para galopar nas trevas. Não concedia a trégua com suas manadas  do terror.  A vida não tinha qualquer possibilidade numa condenação sem sentido. Muita gente morta, pessoas enforcadas, mutiladas,  queimadas.
         Do lado de cá,  Getúlio Var­gas procurava se situar   entre os blocos inimigos, que mantinham acesa a guerra em seus passos devastadores.  Curt Meyer-Clason foi acusado de espionagem a serviço do governo nazista de Hitler.  Foi preso pelos algozes do Estado Novo e  condenado a 20 anos de prisão . Passou cinco anos no presídio de Ilha  Grande, no Rio de Janeiro. Foi quando  o tempo parou para ele enquanto na Europa  mi­lhões de ho­mens da mesma ida­­­de se matavam, mutuamente, sem qualquer tipo de  remorso, numa incrível capacidade de resistência.
       Um companheiro de prisão, o barão Gerhard von Klein, alemão poliglota e muito culto,  despertou  em Curt Meyer-Clason o interesse pela leitura. Assim tinha início sua  grande viagem pelo universo dos livros.  Lia tudo que caía em suas mãos para entender melhor o mundo.  Rilke, Thomas Mann, Friedell,  Mon­taigne, Pascal, Pro­ust, Bernanos, Berdjiajew, Bu­­ber, os grandes romancistas  russos e autores brasileiros. Na medida em que viajava  em companhia de grandes autores, ia pulsando dentro dele outro homem.
        Posto em liberdade estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Foi trabalhar no comércio de compensação alimentícia. Exportava madeira de pinho e importava  uísque escocês.   Em 1954, de­pois de 17 anos no Bra­sil, regressava  à Alemanha, fixando residência em Munique. E lá, em seu chão de origem,  começou a  trabalhar como revisor para várias editoras. Nessa época, como visitante, passou a freqüentar o  Consulado Geral do Brasil,  para onde se dirigia constantemente. Com  certeza para matar a saudade que sentia do nosso país. Como deveria acontecer,  não demorou e   foi sendo solicitado para trabalhos de tradução. Assim foi que nasceu a idéia  e tomou corpo  seu desejo de levar para a  Europa através da literatura a forma de vida latino-americana .  Começava então seu longo e firme  processo existencial de traduzir para o alemão obras do espanhol, português,além de francês  e inglês.
           Curt Meyer-Clason permaneceu em Munique até 1969. Nessa parte do tempo,  já havia traduzido Gabriel García Márquez, João Guimarães Rosa, Juan Carlos Onetti, César Vallejo, Augusto Roa Bastos, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e outros autores importantes da literatura latino-americana. Tornara-se figura respeitada nos círculos editoriais e culturais da Alemanha.  Paralelamente ao seu trabalho de tradutor,  mantinha estreito contato com quase todos os autores da América Latina vivos.  
           Em 1969  recebeu o convite para assumir o cargo de  diretor do Instituto Goethe de Lisboa. Permaneceu nessa  função até ocorrer sua aposentadoria em 1976. Nesse tempo,  Portugal ainda vivia sob a influência dos anos da ditadura de  Salazar, que deixara o governo por questões de saúde, em 1968. Seu sucessor, Marcelo Caetano, seguiria  a mes­ma linha política de repressão salazarista.  Os meios de comunicação eram controlados pela maquina opressiva estatal   de um  governo ditatorial. À maneira própria de um  intelectual idealista,  sem se intimidar com o patrulhamento ideológico e repressivo do governo português, Curt Meyer-Clason transformou o Instituto Goethe de Lisboa “nu­ma porta aberta para a Eu­ropa”. A sede do Instituto servia como um oásis e  ponto de encontro para escritores, representantes da intelectualidade portuguesa e dissidentes de todas as correntes políticas.
Convidava autores e intelectuais alemães para encontros com autores portugueses.  Wer­ner Herzog, Peter Weiss, Walter Jens, Martin Walser, Gün­ther Grass, Heinrich Böll, Hans-Mag­nus Enzensberger e o austríaco Tho­mas Ber­nhard são apenas alguns dos ícones  da cultura alemã que visitaram  Lisboa naquela época. Com uma companhia teatral de Lisboa, Meyer-Clason produziu apresentações do dramaturgo alemão Bertholt Bre­­cht na capital lusa.  Sempre  ajudava  au­­tores portugueses, como Miguel Torga, José Sara­mago e António Lo­bo Antunes,  a encontrar editoras para lançamento de  suas obras na Alemanha.
 Curt Meyer-Clason tornou-se personalidade  cultural de primeira linha  em Portugal, uma pessoa muito estimada nos meios intelectuais locais.  Quando circulou a notícia de que deixaria a direção do Instituto Goethe houve de pronto uma reação contrária entre os intelectuais locais. Foi iniciada uma campanha na mídia portuguesa, liderada pelo romancista António Lobo Antunes, com vistas à permanência dele. Ressalte-se que na relação dos  autores portugueses que traduziu  para o alemão figuram  Eça de Queirós, Camilo Castelo Bran­co, Miguel Torga, Fernando Na­mora,  Al­meida Faria, Urbano Tavares Ro­drigues, Jorge de Sena, Eugenio de An­drade e Sofia de Mello Brey­ner-Andresen. Editou também antologia  de contos e poemas.

      Em 1976, mais  uma vez regressava a Munique. Dessa vez para se dedicar, em tempo integral, ao trabalho de tradutor e à escrita de seus  textos e ensaios. 

 Além dos autores portugueses e brasileiros, já citados,   outros ficcionistas e poetas brasileiros e latino-americanos  foram  traduzidos por Curt  Meyer-Clason:  Adonias Filho,  Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Ignácio de Loyola Bran­dão, José Cândido de Carvalho, Rubén Darío, Autran Dourado, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão, Pablo Neruda, Darcy Ribeiro, João U­baldo Ri­bei­ro, Augusto Roas Bastos,  Fernando Sabino,  José Sarney, César Vallejo,  Octávio Paz e Cyro de Mattos.

Causa  espanto como ele, já tradutor de inúmeros escritores da literatura, brasileira, portuguesa e latino-americana,  ainda conseguiu traduzir   autores de outras nacionalidades, do porte de   Louis Baudin, Brendan Behan, Isaiah Berlin, Erich Blau, Alphonse Boudard, Geoffrey H.S. Bushnell, Alfred Chester, Antonio Di Benedetto, Jean Descola, José Gorostiza, Bernard Gorsky, Ronald Hardy, Alan Harrington, Sean Hignett, Martin Buber, Alberto Moravia, Luc Stang,  Vladímir Nabókov e Henry Rothe Em alguns casos  traduziu mais de  um livro de cada autor.

        Certa vez perguntaram-lhe se ele teve muita dificuldade para  traduzir Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Respondeu que tra­duzir o Grande sertão: Veredas  para o alemão é mais ou menos como traduzir o Ulisses, de James Joyce.  O que ajudou no  êxito do projeto  é que Curt Meyer-Clason  era amigo de João Guimarães Rosa. Durante  anos manteve  correspondência com o escritor mineiro.  Foi-lhe  possível assim resolver as partes mais difíceis da tradução  com o auxílio do próprio autor. Trocaram   mais de 500 cartas. Ele  apresentava as questões, formulava as perguntas e o  romancista  respondia apontando as soluções cabíveis.
Nessa condição,  Guimarães Rosa foi  a Munique várias vezes para  discutir com ele  os termos e as passagens mais complicadas da obra. Chegava a permanecer  de três a quatro semanas. Regressava ao Brasil para retornar algum tempo depois.  Às vezes, tradutor e autor traduzido  discutiam  dias, com vistas a  encontrar a expressão  certa ou adequada de um só vocábulo, que, muitas vezes, nem estava registrado no dicionário. Muito  facilitou no  trabalho árduo  o fato de João Guimarães Rosa ter sido poliglota. Falava fluentemente vários idiomas, inclusive o  alemão, que aprendera durante o período de 1938 a 1942, quando  fora cônsul-geral do Brasil, em Hamburgo. Esse mesmo método de trabalho João Gui­marães Rosa manteria posteriormente com os seus tradutores italiano e americano.
Este articulista teve a honra  de ser   traduzido por Kurt Meyer- Clason. Enviei primeiro para ele  o  livro Vinte poemas do rio e recebi de volta   vários poemas traduzidos e na sua carta a seguinte opinião: Li e reli seus poemas com os sentidos encantados e admiração pelo seu talento mágico. Nunca pensei que um pequeno livro de um poeta do interior baiano fosse sensibilizar o consagrado tradutor de João Guimarães Rosa e Gabriel Garcia Márquez.  Animado, enviei  depois o Cancioneiro do cacau, livro  que havia recebido   o Prêmio de Poesia Ribeiro Couto, da União Brasileira de Escritores (Rio), o Segundo Prêmio Internacional Maestrale Marengo  d’Oro,  em Genova, Itália, o  Terceiro Prêmio de Poesia Emílio Moura, da Academia Mineira de Letras, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Com muita alegria  recebi  dele outra carta fazendo elogio ao livro e ainda  vários poemas traduzidos.
 Foi assim que mantive correspondência com o  notável tradutor alemão  por mais de seis anos.   E tive o privilégio de ter dois livros meus traduzidos por ele: Canto a Nossa senhora das Matas, (Gesang Auf Unsere Liebe Frau von Den Wälden), editado pela Fundação Casa de Jorge Amado,  Salvador, e  Zwanzig Gedichte von Rio und andere Gedichte (Vinte Poemas do rio e outros poemas),  publicado na Alemanha, pela Projekte-Verlag,  de Halle.   Guardo como um tesouro raro a correspondência que mantive com Curt Meyer-Clason . Pretendo publicar um dia.
        Curt Meyer-Clason, este alemão carismático,  que seduzia a plateia  de professores universitários, escritores, jornalistas, estudantes e leitores quando discorria,  durante horas,  acerca de autores e temas da literatura brasileira, portuguesa e latino-americana,  é incomparável como construtor de pontes literárias entre vários países. No século vinte nenhum outro divulgou tanto e com tamanha eficiência a literatura brasileira na Europa. No Brasil ele recebeu algumas merecidas e altas distinções:  Medalha de Ouro Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, Membro-Correspondente da Academia Brasileira de Letras,  a Ordem Cruzeiro do Sul e o Prêmio  Biblioteca Nacional.  Na Europa foi agraciado com o Prêmio de Tradutor da Academia Alemã, para Poesia e Língua,  e com a Grã-Cruz de Mérito da República Federal  da Alemanha. Em Portugal  foi integrante da Associação dos Es­critores Portugueses.
          Foi um entusiasmado defensor  do Brasil. Não se tornou rancoroso nem guardou  ressentimento pelos anos  difíceis que teve no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Esse tradutor admirável, conhecedor profundo e  intenso  da literatura brasileira  faleceu em janeiro deste ano, de 2012, em Munique, aos 101 anos de idade.


                                    Referências Bibliográficas

MATTOS, Cyro de. Canto a Nossa senhora das Matas (Gesang Auf Unsere Liebe  Frau Von Den Wäldern), tradução Curt Meyer-Clason,, Fundação Casa de Jorge Amado, Casa de Palavras, Salvador, 2004.
-------- Zwanzig Gedichte  von Rio und andere Gedichte (Vinte poemas do rio e outros poemas),tradução Curt Meyer-Clason, Projekte-Verlag, Halle, Alemanha, 2010.

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