Antologia de Cyro de Mattos: Uma Leitura de Juan Ángel Torres
Rechy, Poeta e Filólogo Mexicano, da Universidade de Salamanca, Espanha.
Desde as supremas cavernas da
contemplação, de um voltar à vida vivida e sonhada por quem cumpriu com humilde
satisfação os deveres e objetivos profissionais e humanos, as imagens poéticas
da antologia Onde Estou e Sou / Donde
Estoy y Soy, do escritor brasileiro Cyro de Mattos (Itabuna, Bahia, 1939),
resgatam os gritos e os murmúrios líricos que compõem o mosaico de sua
essência. Com uma profunda bagagem literária (El Cid, Darío, Whitman, Neruda, etc.), Mattos entrega-se por
inteiro à sorte: lança ao alto a moeda e transforma-se no espectador e na
vítima deste jogo de cara ou coroa.
O autor domina com maestria e elegância extremas a tradição literária
renascentista do soneto, mas também rompe com cânones e cria gritos de
vanguarda – em “Agudo Mundo”, o impulso poético transgride a sintaxe, e o
lirismo deambula por ambientes surrealistas; enquanto “Galope”, de fato,
expressa o som galopante de cavalos. Em seus poemas encontramos o menino que vê
o mar pela primeira vez, e o homem mais velho que se detém em uma parte do
caminho, escutando o retroceder de seus passos, em um turbilhão de
reminiscências e fantasmas que o dilaceram. Sua terra natal. Nostalgia nas
pedras. Velhos armazéns. Rios. Sim, seu rio, sua inocência, sua infância, todo
aquele paraíso.
Destaca-se na poesia de
Mattos um tom de íntima confissão. Uma fragilidade aberta aos disparos e
abraços do mundo. Os poemas que integram esta seleção foram escolhidos entre
oito livros, inscritos no conjunto de uma década profícua: cinco publicados – Vinte Poemas do Rio, Cancioneiro do Cacau, Ecológico, Vinte e Um Poemas de Amor e Oratório
de Natal – e três inéditos – Rumores
de Relva e Mar, Agudo Mundo
e Devoto do Campo.
No começo da antologia
encontramos o poema “Lugar”. Nele, a perspectiva do eu lírico não exalta as
pessoas ou a natureza; não engrandece ou humilha com olhares satíricos ninguém;
tampouco resulta horizontal, de igual para igual. Ao
contrário, logo reconhecemos sua poética, que se sabe um grão no deserto, e é a partir desta pequenez que o poeta lança
seu grito (que é ele mesmo) pelos telhados do mundo. A poesia, então,
irriga suas veias, faz com que transcenda o tempo histórico, localizando-o em
um passado povoado de mistérios. Ela realça o sentimento, valoriza-o. E nos
leva a vislumbrar o sentido da vida para nosso poeta: viver o medo, as
lágrimas, o beijo, o riso; ser música e sonho.
O olhar inocente do
menino será diferente no homem adulto – ainda que este, para acompanhar tal
olhar, necessariamente será obrigado a encarná-lo, resgatando-o com a palavra
poética. “O Menino e o Rio” tem a estrutura de uma litania. O ambiente adquire
um tom grave, solene, entremeado, ao mesmo tempo, por antífonas coloridas e
deslumbrantes. Em “Rio Definitivo” encontramos a mesma tessitura. A descrição
do rio desejado não coincide com a do opulento Amazonas/Com seu mundo de água, nem com a do transbordante Nilo e suas dádivas. Para falar do rio
pelo qual anseia, Mattos recria uma composição de lugar que nos leva às
vivências de sua infância. E desfia, em cada verso, um rosário de lembranças:
os remansos, barrancos, trampolins; a lua e o areal; ilhas com tesouros,
descobertas na penumbra; as lavadeiras nas pedras, os tropeiros e os meninos de
peito nu, ao vento. Testemunhamos, assim, um caminho que percorre as galerias
da vida do poeta até alcançar o “Soneto do retorno”, por exemplo, no qual a voz
lírica não será mais a do menino, e sim a de um homem mais velho – precisamente
do homem que regressa à terra natal, ao rio de sua infância. E cujo retorno é
marcado pelo signo da Cruz.
“Cancioneiro do Cacau”
é introduzido por uma nota desoladora, uma epígrafe bíblica que orienta nossa
leitura: “Oh, morte, quão amarga é tua lembrança” (Eclesiástico 41:1). É amarga
para um homem em paz na vida e que ainda pode dela retirar seus proventos. Não é
uma morte que livra do sofrimento o homem necessitado, cansado e sem
esperanças. Tudo passa como o vento e o poeta encontra-se à
beira do vazio: Vês morte no ar fendido por bruxas,/ Aragem que na
solidão despenca/ Nostalgia, gargalhar incesante/ Dos frutos já mortos (…)
//Estranho não habitar mais a terra/ Dos frutos de ouro. No soneto seguinte podemos ler: Agora sob cinzas, no desamor/ Espalhado por vassouras-de-bruxa, /
Calo-me sem saber para onde vou.
A voz de Mattos, em
alguns momentos, transforma-se em um sussurro que nos guia ao interior deste
homem em plena consciência de si mesmo. Recria a pintura dos quadros pendurados, expondo
suas entranhas: Um povo e sua flor/
Dentro de mim, / Com vozes, cores, ríos. / Um povo e sua flor/ Com ventos,
aves, penas. Dois outros fundamentos que sustentam
sua obra, um dos quais já nos referimos brevemente, são o erotismo e o
sentimento religioso. Cinco são os poemas eróticos recolhidos de Vinte e um poemas de amor, cujo título
nos remete imediatamente ao livro de Neruda, publicado em 1924. Por outro lado,
títulos igualmente tão significativos como “Este Cristo”, “Soneto da Paixão”, “Santa Cruz” e
“Sexta-Feira Maior” nos introduzem às outras vozes e espaços do poeta amadurecido,
ao mesmo tempo em que cumprem o papel de prelúdio em relação aos cinco últimos
poemas da antologia, incluídos em Oratório
de Natal.
O autor baiano Cyro de
Mattos é advogado, jornalista, contista, romancista, cronista, poeta e
organizador de antologias. Faz parte de vários Centros de Estudos, Academias e
Institutos. Pertence a Ordem do Mérito da Bahia (no Grau de Comendador), é
membro da União Brasileira de Escritores, tanto do Rio de Janeiro quanto de São
Paulo, do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, da Academia de Letras de
Ilhéus e da Academia de Letras de Itabuna, entre outros. Ganhou cerca de 40
prêmios literários, entre os quais o Prêmio APCA (1992), da Associação Paulista
de Críticos de Arte, de melhor livro de literatura infantojuvenil; o Prêmio
Literário Internacional Maestrale-San Marco, por Cancioneiro do Cacau; o Prêmio da Academia Brasileira de Letras; e
o Prêmio Miguel de Cervantes, da Casa dos Quixotes (Rio de Janeiro), para
autores em língua portuguesa.
A edição bilíngue desta
nova antologia de Cyro de Mattos foi organizada e prefaciada pelo poeta e
tradutor peruano Alfredo Pérez Alencart. Apresentou-a o autor desta resenha, na
acolhedora tarde da quarta-feira, 02 de outubro de 2013, no Centro de Estudos
Brasileiros da Universidade de Salamanca, juntamente com o Vento da tarde/Viento de la tarde, de Rizolete Fernandes, e Alma Aflita/ Alma afligida, de Álvaro Alves de Faria, durante a homenagem a Frei
Luís de León, no XVI Encontro de Poetas Ibero-americanos, coordenado por Alfredo
Pérez Alencart.
Por fim, Onde Estou e Sou ressalta o doce sonho
romântico e azul da infância. Ao mesmo tempo é um livro da vida adulta e madura
do poeta de Itabuna, que valoriza a esperança, o renascimento, e, às portas do
inverno, a primavera sempre verde.
Contemplamos o homem mais velho que se detém e escuta o retroceder de
seus passos no dinamismo de reminiscências, que o arrebatam na sua essência, ferida pelo
desejo das águas puras e profundas da infância.
Tradução:
Vássia Silveira
Da
Universidade Federal
De
Santa Catarina
Fonte: www.crearensalamanca.com/antologia-de-cyro-de-m...
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