O Leão da Copa
Armando Nogueira
Copa do Mundo de 58, na Suécia. Bons
tempos. Repórter podia viajar no mesmo vagão, no meio dos craques. Assim foi na
viagem de Gotemburgo pra Estocolmo, onde
o Brasil jogaria a semifinal contra a França. A França do respeitável Raymond
Kopa. Me Lembro que sentei ao lado de Vavá. Ele ocupava dois bancos: o dele e o
da frente, com encosto invertido, pra esticar a perna e acomodar o pé direito.
Todo mundo sabia que Vavá tinha se machucado, chutando uma sola de chuteira, no
jogo com a União Soviética, Brasil 2
a 0, os dois de Vavá.
Mas eu não imaginava o tamanho do
estrago. Agora, vendo, assim, de perto, a olho nu, eu posso compreender por que
foi que ele não entrou contra o País de Gales. Não tinha como. No peito do pé,
um talho de quatro centímetros, profundo, a carne desbeiçada. Parecia uma
cratera. Foi quanto lhe custou a bola dividida do segundo gol do Brasil nos
soviéticos. A sola do soviético, antes de cortar o pé, cortou a meia de lã e
dez voltas da atadura que enfaixava o tornozelo de Vavá. Naquela partida, Vavá
jogou uma barbaridade. Vavá tinha futebol pra qualquer preço: sabia tocar a
bola, com finesse, mas sabia também
dividir uma bola, com firmeza.
- Vai dar pra jogar contra a França? - perguntei-lhe por perguntar.
Ele respondeu, confiante:
- Vai dar, tem que dar!
Fiquei na minha, mas não acreditei. O jogo seria dali a dois
dias. Aquela ferida não cicatrizava em dois dias, nem com reza de terço na mão.
Vem o jogo. Vavá está ali, perfilado, ouvindo o hino
nacional. Por sinal, revendo a foto, hoje, noto que Vavá é o mais compenetrado
de todos. As duas mãos coladas no corpo. É a própria pátria em posição de
sentido.
Atrás do gol,
eu só me lembrava da cena no vagão do trem. O pé inchado, um lanho enorme, todo
borrifado do velho e manjado Polvilho Antisséptico Granado. E me perguntava,
brasileirissimamente angustiado: como é que pode jogar futebol com uma ferida
daquela no pé? Justamente, o pé de estimação. Vavá chutava com as duas, mas a
preferida era a direita.
A bola corre e não me saía da cabeça a idéia de que Vavá
será um a menos. Em campo ou fora de campo. É bom lembrar que, na época, não se
podia substituir ninguém. É bem verdade que o moço era admirado pela turma por
ser um guerreiro. Não foi por outra razão que lhe deram o lugar de Mazzola.
Mazzola andou encurtando o passo contra os ingleses (zero-a-zero) e, em pleno
jogo, levara uma tremenda bronca do capitão Bellini:
- Isso aqui é jogo pra macho! – explodiu Bellini, quando viu
Mazzola deitado na grama, reclamando de uma entrada ríspida de um inglês.
Bom, amigos de hoje, eu só posso dizer a vocês uma coisa:
Vavá jogou a partida contra a França como um bravo. Não refugou uma só disputa
com os zagueiros franceses. Numa delas, a bola dividida, o central Jonquet
levou a pior com Vavá e acabou saindo de campo com a perna fraturada. Os
franceses não culparam Vavá. Ninguém culpou Vavá. O lance foi duro, mas na
bola. Vavá nunca entrava maldosamente. Era leal. Atacante destemido de dois
mundiais inesquecíveis.
Vavá fez um gol, dos cinco na França, e pelo que me
confessaria depois, em nenhum momento pensou na ferida do peito do pé. Herói
não tem pé. É só coração. Pois três dias
depois, sem que estivesse curado, Vavá metia o pé, aquele mesmo pé, em dois
passes cruzados de Garrincha, marcando os dois gols da reação brasileira contra
a Suécia, na final da Copa.
Até hoje, eu não sei quem foi que, primeiro, chamou Vavá de
Leão da Copa. Mas, desde aquela partida contra a França, eu fiquei sabendo por
que alguém teve a feliz idéia de batizá-lo Leão da Copa.
Quanta saudade!
*Armando
Nogueira nasceu no Acre, na cidade de Xapuri, em janeiro de 1939. Comandou o
jornalismo da rede Globo durante vinte anos. É um dos maiores e cronistas
esportivos do Brasil de todos os tempos. Único jornalista que esteve presente,
no local do evento, em 14 copas do mundo de futebol, de 1950 a 2002. Um mestre
das palavras na crônica esportiva, demonstrando na escrita tudo o que se requer
de um cronista exemplar: consciência artesanal, força imagística, leveza
poética, traços épicos e dramáticos. Publicou, entre outros, “Na Grande Área” e
“A Bola e a Rede”. O texto “O Leão da Copa” foi extraído do livro “A Ginga e o
Jogo”, 2003.
(Nota de Cyro de Mattos)
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