Brasilianista
Antonella Roscilli fala sobre a menor distância entre Brasil e Itália
De passagem pelo Brasil, a brasilianista Antonella
Roscilli fala sobre a relação entre os dois países a partir da obra e da vida
da escritora Zélia Gattai
Brasileiros são profundamente gratos aos italianos
pela pizza e a macarronada que assimilamos no paladar nacional. Mas a relação
entre Itália e Brasil vai muito além da mesa – ou dos estereótipos. Esta
convicção é a matéria-prima do trabalho da romana Antonella Rita Roscilli,
brasilianista, escritora, pesquisadora, jornalista e tradutora especializada em
estudos sobre literatura brasileira e sobre a imigração italiana no maior país
da América do Sul.
Antonella esteve no Brasil para lançar seu mais
recente livro, Zélia Gattai e a Imigração Italiana
no Brasil entre os Séculos XIX e XX, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte. O
evento fez parte do programa Conversas Ítalo-Brasileiras, realizado desde 2015 pela Casa Fiat
de Cultura, em parceria com o Consulado da Itália em Belo Horizonte, e conta
com apoio da Embaixada da Itália em Brasília e da Associação Cultural
Ítalo-Brasileira de Minas Gerais (ACIBRA-MG).
Zélia Gattai (1916-2008) foi uma das mais lendárias
escritoras brasileiras, autora de clássicos como Anarquistas graças
a Deus e Um chapéu para viagem. Filha e neta de imigrantes toscanos,
esposa de Jorge Amado por 56 anos, Zélia também teve grande atuação política.
Com sua família, participou do movimento político-operário anarquista que tinha
lugar entre os imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, no início do
século 20.
Antonella conversou com nossa reportagem pouco
antes de sua conferência em Belo Horizonte. A brasilianista é formada em
Literatura Brasileira e Países da África Lusófona na Universidade La Sapienza,
de Roma, e tem mestrado em Cultura e Sociedade na UFBA. Confira abaixo os
melhores momentos da entrevista:
Como surgiu seu interesse para
estudar o Brasil?
Surgiu há quase 25 anos e por isso acompanhei
muitas transformações. Eu também já trabalhava com literatura latino-americana
e tinha um programa em uma rádio no qual eu apresentava um livro de literatura
caribenha e mexicana toda semana. Depois fiz uma viagem ao Brasil e de lá
comecei a conhecer mais a literatura e música brasileira. Fui ao Rio, Búzios e
interior da Bahia. Foram dez dias, e isso despertou meu interesse para conhecer
mais. Já trabalhava na RAI (Rádio e Televisão Italiana) e, então, me apaixonei
e comecei a ler, claro, Jorge Amado e Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, que
adoro. Depois disso, me formei em literatura brasileira, comecei a escrever
sobre o Brasil, me especializando – e continuo fazendo isso, porque acho que
nunca terminarei, porque o país é imenso, existem muitos “brasis”. A partir
disso também comecei a escrever sobre música brasileira, cultura em geral e
história. Sem querer, fui a primeira pessoa do mundo – tenho até vergonha de
falar – a fazer uma dissertação sobre Zélia Gattai, não sabendo que eu estava fazendo
um trabalho piloto.
A visão da Europa e dos europeus têm
sobre o Brasil está transformada nesse tempo?
Agradeço por essa pergunta, pois há mais de 20 anos
luto contra os estereótipos, porque o Brasil sempre tem uma imagem muito
reduzida na Europa e na Itália, simplificando, por exemplo, em carnaval,
futebol e samba. Claro que isso faz parte, mas sempre fica essa imagem. Então
isso faz parte da minha luta cotidiana e foi por isso que depois de muitos anos
como pesquisadora, jornalista e escritora decidi abrir a Sarapedge, uma revista que me desse,
primeiramente, a possibilidade de escrever sobre várias temáticas. Escrevi
sobre a Guerra de Canudos, a Maria Quitéria, até sobre imigração italiana por
um caminho pouco explorado.
Então você acha que ainda hoje há
muitos estereótipos sobre o Brasil?
O estereótipo existe no mundo inteiro. Os
brasileiros também estereotipam os italianos com a tarantella, a pizza etc. Por
um lado,isso serve para identificar. Por outro, é uma grande limitação e
redução que ainda persiste. Devo dizer que nesses anos todos, a política
cultural no Brasil para o exterior melhorou muito. Então pessoas que imaginavam
que aqui houvesse apenas índios, começaram a conhecer exposições de artistas
contemporâneos.
O que motivou essa mudança? Foi como o
Brasil que aprendeu a se vender ou com o fato das pessoas estarem estudando
mais o país?
É muito mais fácil escrever sobre uma festa de
carnaval do Rio, que é lindíssima. É muito mais fácil vender uma matéria como
essa para um jornal italiano do que, por exemplo, outra sobre o carnaval de
Olinda ou sobre a história da invasão holandesa com o italiano que lutou aqui.
Um pouco, eu acho, é porque o discurso comercial é mais fácil, mas como gosto
de desafios decidi abrir essa revista cujo nome de termo ioruba significa
“Mensageiro”. Ou seja, não queria uma revista que fosse só de cultura
brasileira para a Itália. Eu queria a troca. O que eu faço também como pessoa é
essa ponte. Existem colaboradores do Brasil que mandam matérias para lá e tenho
também italianos que escrevem, mas tudo em dois idiomas (italiano e português),
porque acho que para lutar contra o estereótipo é preciso usar um pouco. Quando
vale a pena falar de outras temáticas, por exemplo, em Minas Gerais o
Aleijadinho, por que não abrir isso para o exterior? Claramente, a primeira vez
que você fizer a proposta de uma matéria sobre ele (Aleijadinho) é difícil
encontrar um diretor de um jornal que aceite. Mas depende também como você
aborda ou como você causa o interesse de conhecer mais.
Diante do que você já falou e
conheceu, o que você acha que mais retrata a cultura brasileira?
Acho que esse país é imenso, não existe um só
Brasil. A Bahia é um, Minas é outro, em São Paulo é outro Brasil. Eu ainda não
sei qual é a constante. Então não sei. Depende.
Como você avalia a imigração
italiana? Quais foram as marcas no Brasil e para a própria Itália?
No meu terceiro livro, que publiquei para o
centenário de Zélia Gattai que conclui a trilogia sobre ela, tem um capítulo
dedicado à imigração italiana entre os séculos 19 e 20. Porque por meio da obra
dela e de outros autores, você percebe a importância de como os italianos
contribuíram muito, principalmente no Sul. Não só os italianos, mas outros
povos também. Eles povoaram terras no Brasil como no Paraná e ajudaram muito,
na minha opinião, e no que conheço até agora, com a lutas operárias, direitos
sociais, a importância da família, o valor do trabalho, o valor de pensar hoje
mas para fazer alguma coisa amanhã. Quando vou para São Paulo, onde passei
agora 15 dias e fiz um evento no Instituto Italiano de Cultura, me sinto na
Itália. A cidade é diferente, é uma megalópole, mas eu me sinto assim, sinto a
alma italiana de São Paulo. Percebo também na Bahia, porque Salvador recebeu ao
longo da história, sobretudo nos séculos 17 e 18, muita imigração italiana. Ao
mesmo tempo tudo isso se repercute na história italiana. Ou seja, nas pesquisas
que tenho feito vejo que há muitos laços históricos que ainda quero
desenvolver. Tem, por exemplo, um grupo de italianos que vieram para o Brasil e
eram deportados políticos do Estado Pontifício, que chegaram em Salvador e que
participaram da Revolta de Sabino e depois muitos deles ficaram lá.
Você
fala bastante sobre militância política de Zélia Gattai. Você pode falar
mais um pouco sobre isso?
A imigração teve duas vertentes: econômica e
política e Zélia cresceu em uma família que vivenciou esses dois lados típicos.
A causa econômica era fome, pobreza, miséria. Então a família da mãe veio por
isso, para trabalhar em uma fazenda em Cândido Mota no estado de São Paulo em
1890. A família do pai, Ernesto Gattai, veio de Florença, na Toscana, por
motivos políticos. Ele e a família eram anarquistas e eles receberam muitas
influências de Mikhail Bakunin que viajou para a Itália. Na época, aquela parte
de Toscana tinha muita gente que lutava. Tinha um jornalista e biólogo que
queria fazer um experimento socialista com uma colônia comunitária e recebeu
terras do Imperador Dom Pedro II no Paraná e veio para o Brasil. O avô de Zélia
decidiu embarcar com a família e a mulher, Ardia Fanonni – faço questão de
dizer, pois conheci um descendente lá em Florença – com cinco filhos, entre
eles o Ernesto Gattai com cinco anos. Então, Zélia respirou desde criança
palavras italianas e ideias de justiça, democracia, igualdade. Isso impregnou a
vida inteira dela. Ela mesma escreve no livro Anarquistas, graças
a Deus, que quando era
criança no domingo os italianos se reuniam e faziam festas, tinha a Aliança
Nacional Libertadora e ela vendia jornais como La Plebe, ou seja, jornais de resistência.
Você acha que as lutas sociais no
Brasil foram mais intensas?
Eu acho que não se pode fazer uma comparação, pois
são dois países distintos. Não gosto de fazer comparação porque o contexto é
outro, cada país tem histórico e história diferentes. O Brasil teve muita
colonização – só no estado de São Paulo há cinco milhões de descendentes de
italianos. Mais que Roma inteira! Então, a história
foi muito diferente. O
tamanho também é diferente.
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