II FESTIVAL LITERÁRIO DE ILHÉUS (26.04.2017)
Palestra de Florisvaldo
Mattos
Nesta navegação de longo
curso para uns e curto para outros, que é o ato de publicar livros, acabo de
lançar o meu oitavo livro de poesia, portando 97 inéditas elocuções de
fundo lírico e outras tinturas que namoram afoitamente o épico. Embora a idade
não me justifique, sou de publicar livros minimamente, quase esporádicos.
Depois de Poesia Reunida e Inéditos, em 2011, e Sonetos elementais,
em 2012, resolvi invocar novamente a paciência dos meus raros leitores com novo
volume de versos, intitulado Estuário dos dias e outros poemas, fruto
dessa longa, porém magra aventura editorial.
Há poucos meses, postando eu
alguns inéditos na internet, o poeta Antônio Brasileiro, um dos astros da
geração posterior à minha, externando a cordialidade e a generosidade que lhe
favorece o recanto bucólico onde vive, em Feira de Santana, sua pátria
sertaneja, dizia-se surpreso de meu desígnio em não me afastar por completo da
poesia.
- “Oitentão que é, isso é
mais que admirável” - espantava-se ele.
Perdoando-lhe o excesso,
curvei-me, sensibilizado, diante da bem-humorada gentileza, ao ver ali quase
repetir-se atitude benigna de Jorge Amado, 61 anos antes, quando
publiquei Reverdor, meu primeiro livro, ao confessar, em comentário lido
durante sessão da Academia Brasileira de Letras, quão contente se sentira com a
descoberta, segundo ele, de um poeta e uma poesia, num tempo “de tanta facilidade
e tamanho engano de rapazes tão sem verdade e sem força de criar”.
Não sei se o futuro absolveu
a opinião do grande romancista, para muita honra meu conterrâneo grapiúna. A
sorte fora lançada.
Ao longo da vida, tenho sido
mesmo um tanto avaro em publicar, tanto quanto em escrever literatura. Se
cuidadoso na poesia, ainda mais o fui em relação a outros gêneros literários,
pois, em prosa, só escrevi e publiquei um conto e uma peça de teatro, esta
levada em 1974, no Teatro Vila Velha, em Salvador, pelo saudoso diretor
Sóstrates Gentil, versando um tema alojado justamente na remota atmosfera de
lutas de coronéis e jagunços em terras do cacau. Abri uma exceção, assim mesmo
parca, apenas para a ensaística em literatura, arte e questões sociais.
Ultimamente, tenho me fixado
mais na poesia, e em leituras e releituras do que me agrada. Ao longo do tempo,
fui para com ela um tanto adúltero, escudado e insuflado por duas razões
básicas: a primeira teve como marca indevassável o grau de autocrítica de que
desde jovem me tomei, diante da ânsia de escrever o que pensava e sentia.
Repetindo o argentino Jorge Luís Borges, creio que a poesia e o poema se
apresentam ao poeta e ao mundo como uma forma de magia. Como ambos dependem da
linguagem, casam-se pensamento e imagem por meio da palavra para alcançar a
emoção, que é, por fim, o que aguarda o leitor, sem que com isso se despreze a
forma.
Dizia Ezra Pound que a
técnica é a prova da sinceridade de um poeta. Concordando com ele, tenho para
mim que sinceridade e qualidade se completam no fazer poético.
A outra razão que me pôs a
poesia em plano secundário foi o absorvente mergulho de 53 anos no exercício
cônscio e fiel do jornalismo profissional, desde que, no mesmo dia da solene
formatura em Direito, frustrando os sonhos de meu saudoso pai, um denodado
comerciante que exercia seu oficio no fundo de matas e roças de Itacaré, eu já
compunha a redação de um novo jornal, que surgira em Salvador, o Jornal da
Bahia, optando por ser jornalista, como uma fatalidade, para toda a vida.
Por fidelidade a uma
profissão, optei por ser, assim, durante anos, em matéria de poesia e
literatura, embora persistente leitor, um quase criador secreto, desses que
levam a vida esmerando-se em guardar o que escrevem, elegendo uma gaveta como o
seu mais paciente e fidedigno leitor, ou como outros que se conformam,
resignadamente, em publicar um único livro em vida, como foi o caso de um de
nossos maiores poetas, nascido em Belmonte, mas por muitas décadas vivendo em
Ilhéus, o saudoso Sosígenes Costa. Pronuncio esse nome e me vejo compelido a
abrir um parêntese, para evocar e registrar quão proveitosa foi para mim, ainda
jovem, a relação de admiração, aprendizagem e amizade que travei com Sosígenes
Costa, nesta cidade, que, para ele, brilhava “qual grande búfalo fosfóreo”.
Completado o curso de
ginásio, vinha eu de Itabuna, para atender a duas imposições do momento:
prosseguir nos estudos e cumprir o serviço militar obrigatório. Foi quando, já
escrevendo e publicando poemas, em jornais, mas de fundamento romântico e
rabiscos parnasianos, colegas e amigos me advertiram da existência em Ilhéus de
um dos maiores poetas da Bahia e, logo, me emprestaram uma antologia de poesia
baiana, editada no bojo das comemorações do quarto centenário de fundação da
Cidade da Bahia, que trazia poemas dele. Lendo-o, fiquei curioso e empolgado e,
logo, também, ansioso por conhecê-lo.
Quero aqui apenas relembrar
o que foram essas amenas tardes de frequência na plácida sala de trabalho de
Sosígenes Costa, como secretário da Associação Comercial de Ilhéus, abrindo-me
os horizontes não só para outras esferas da poesia nacional, especialmente o
modernismo, como para a poesia em si, e quanto disso dependeram as minhas
opções futuras, dele auferindo um rico e vasto cabedal de experiência e saber
que me chegava por meio de lúcidas palavras.
Esses momentos de tranquila
conversação com o bardo de Belmonte foram resumidos em um capítulo de meu
livro Travessia de oásis - A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa,
publicado em 2004. A título de reminiscência, aqui transcrevo parte dessa
convivência, mostrando fielmente o que significou para mim dialogar com um
grande poeta em carne e osso.
“Tímido, penetrava eu
naquele edifício de sóbria arquitetura e arremedos neoclássicos da veneranda
Praça Eustáquio Bastos, para visita-lo, e lá permanecia seguidas horas.
Mostrava-lhe poemas que escrevera ou publicara no Diário da Tarde, onde me
acolhia a generosidade quase paternal do jornalista Octávio Moura, então
diretor do órgão que ajudou a construir e propagar o prestígio da região do
cacau. Ouvia seus comentários, suas ponderações, transmitindo-me conhecimento
da arte da poesia e, principalmente, fazendo-me perceber maneiras de como
melhor trabalhar com o verso.”
“Alto, aprumado e hígido,
sempre de terno e gravata, em sua poltrona, tranquilo e reservado, nessas
ocasiões, Sosígenes mais parecia um sacerdote em trajes profanos, a discorrer
pausadamente sobre literatura e poesia. Por uma janela, à minha esquerda, o
frescor da brisa que vinha do mar em direção à praça invadia a sala, com os
perfumes de um pequeno jardim, onde eu supunha cultivasse ele as rosas, os
crótons e os antúrios que minha vista alcançava.”
"De quando em vez, animado
pelo clima da conversa, meu interlocutor abaixava-se, abria uma gaveta à
direita de sua escrivaninha e de lá arrancava maços de papel amarelecido e
gasta datilografia, alguns em manuscrito, e lia belos sonetos, todos àquela
altura inteiramente inéditos em livro, embora andasse o poeta beirando, em
1951, já então os 50 anos. E, com alento, completava a leitura, levantando-se e
dirigindo-se à biblioteca que organizara para a entidade, mas, no fundo, sempre
supus, para si próprio, e de lá vinha sobraçando dois ou três livros de arte ou
história da arte, em cujas páginas se detinha, comentando reproduções de obras
de artistas de diferentes estilos, escolas e épocas.”
“Perplexo e enlevado, com os
poemas que ouvia e lia, em manuscritos ou datilografados, auferindo sua
linguagem e força imagética, e, também, com os livros de arte, cujo conteúdo e
aparência eram para mim novidade. Apreciava e dali saía convencido dos rumos
que deveria seguir doravante, em matéria de poesia e literatura, bem diversos
das oportunidades de leitura e estudo, que, até bem pouco tempo antes, tivera,
a apenas trinta quilômetros de distância, na cidade de Itabuna, de prósperos
comércio e vida rural, porém de quase nenhuma ilustração estética. Afora o
esporte, presidindo ao princípio domens sana in corpore sano, a arte deveria
ser algo estranho àquelas plagas de hábitos e costumes ainda rústicos.”
Aproveito para ler aqui um
dos poemas dele, que constavam da antologia, justamente um dos emblemas de sua
lavra poética, com a reiteração de versos, que é uma das marcas de sua
criatividade, sem em nada prejudicar a expressão lírica, segundo o crítico José
Paulo Paes, que editou sua obra completa, postumamente.
CREPÚSCULO DE MIRRA
Sosígenes Costa (1901-1968)
A tarde fecha a cintilante
umbela.
Vêm os aromas como uma
grinalda
ornar a sombra arroxeada e
bela
e ungir os nossos sonhos de
esmeralda.
Nuvens de mirra e oriental
canela
formam na sombra a singular
grinalda.
A tarde fecha a cintilante
umbela
e o vento as asas do dragão
desfralda.
A própria lua vem lançando
aroma.
Nasce vermelha como a flor
de um cardo
e sobre a mirra dos vergéis
assoma.
E a noite chega no seu grifo
pardo,
cheirando a incenso como o
rei de Roma
e como Herodes recendendo a
nardo.
(1927)
Após as obrigações de estudo
e serviço militar, parti para Salvador com a mente prenhe de novas ideias e
aspirações, e o corpo tomado de ânimos. E foi quando, após algum tempo, já na
universidade, me engajei nas aspirações estéticas e vivenciais do grupo que
iria depois chamar-se Geração Mapa, publicando poemas inicialmente na então
aclamada revista Ângulos, produto das lucubrações estéticas do que restava
do movimento Caderno da Bahia (1948-1955), que vigorara na década anterior, e
também em jornais.
Esse movimento, cujo nome
advinha da revista intitulada Mapa, que passou a editar, tinha como
proposta básica consolidar o que não conseguira a geração anterior, que era,
além de romper com a inércia cultural, cevada na renitência do conservadorismo,
varrer, de uma vez por todas, o bolodório e o preconceito vigente contra a arte
moderna, tendo como baliza a nova realidade nacional e internacional,
defrontada com o esmaecimento dos reflexos do pós-guerra mundial e surgimento
de um novo patamar na condução dos conflitos entre países. O mundo se pautava
agora pela Guerra Fria, no confronto entre Estados Unidos e União Soviética.
Diferentemente de movimentos
anteriores, o grupo de Mapa se abria também, sob a liderança de Glauber Rocha,
para outras amplitudes, pois, além de poesia, literatura, artes plásticas e
jornalismo, cultivava outras linguagens artísticas, como cinema, teatro, dança,
editoração e arquitetura, e com esse fôlego firmou-se no cenário cultural
baiano, mergulhando, com ações, criações e posturas, na caudal impelida pelas
reformas que a administração do reitor Edgar Santos, então, fins dos anos 50, inícios
dos 60, imprimia na Universidade da Bahia, possuindo contornos de uma
verdadeira revolução cultural.
Atuando em várias frentes,
além da revista Mapa, o grupo criou seu próprio selo editorial, as
Edições Macunaíma, que publicava livros, álbuns e plaquetas; fundou uma
companhia cinematográfica, a Iemanjá Filmes, que abriria caminho ao movimento
do Cinema Novo, projetando-o nacionalmente, em ousado e fecundo processo que
desaguaria na realização de filmes paradigmáticos, como Deus e o Diabo
na Terra do Sol e O Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro, de Glauber
Rocha, já antes autor do longa Barravento e do curta O Pátio;
assim como outras realizações de destaque neste segmento cultural, entre as
quais o documentário Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, que
escreveu também uma peça de teatro, Evangelho de Couro, versando sobre a
tragédia de Canudos, marco e exemplo do apoio e incentivo do grupo ao
pioneirismo vitorioso da Escola de Teatro da Universidade da Bahia. No campo
das artes plásticas, organizou exposições de pintura, escultura e gravura, não
só de seus próprios artistas, como de outros, contribuindo para o incremento
não só do mercado de arte como para o surgimento de várias galerias de arte em
Salvador.
Hoje, confesso sentir imenso
orgulho por pertencer a esta geração, cujo início de atividades dentro da cena
cultural baiana completa redondos sessenta anos, neste 2017, com os espetáculos
de poesia teatralizada levados no auditório do Colégio da Bahia, as chamadas
Jogralescas, que açularam os ânimos, tanto de progressistas, como também os de
espíritos ainda presos a um passado, que desejavam jamais devesse passar.
Direi algumas palavras sobre
esta minha magra trajetória editorial.
Meu primeiro
livro, Reverdor, publicado em 1965, por incentivo e empenho de
companheiros de geração compreendia uma coletânea de poemas em que eu advertia
de entrada que tinham sido reunidos para publicação, “tendo em vista uma
unidade temática de base agrária”, querendo com isso transmitir a ideia de que
a poesia deveria se distanciar das angústias, tormentos e atribulações urbanas,
buscando purificar-se com o que emanava da vida rural e atividades agrárias.
Estava imbuído da ideia de que a vida urbana começava então a ser fonte de
perturbações mentais, mais apropriadas ao tratamento psicanalítico. As palavras
deveriam transmitir um estado de pureza na formulação do poema. Com isso,
deixei de fora poemas de produção anterior, que só iriam aparecer como parte de
um terceiro livro, sob o título de Noticiário da aurora.
Leio um poema deste primeiro
livro.
A CABRA
Talvez um lírio. Máquina de
alvura
sonora ao sopro neutro dos
olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me
tortura
guardar-te, olhos
pascendo-me vencidos.
Máquina e jarro. Luar
contraditório
sobre lajedo o casco azul
polindo,
dominas suave clima em
promontório;
cabra: o capim ao sonho
preferindo.
Sulca-me perdurando nos
ouvidos,
laborado em marfim – luz e
presença
de reinos pastoris antes
servidos –
teu pelo residência da
ternura
onde fulguras na manhã
suspensa:
flor animal, sonora
arquitetura.
(1965)
(1965)
No segundo
livro, Fábula civil, de 1975, opera-se um salto, impulsionado pelo cenário
de trevas e opressão que se estabelecera no país, sob o guante da ditadura,
instalada em 1964. Não havia então outra saída. Espelho de uma realidade
pulsante, mas embebida no martírio, a poesia irá refletir o que a censura
permitiria perceber-se, pela voz da mídia e pelo trânsito dos assombros,
projetado eficazmente no espaço urbano, prevalecendo uma entonação entre o
dramático e o épico, mas sem perder de vista a pulsão lírica, em versos medidos
e formas fixas. E, como em todos esses casos, a construção poética se funda
mais no alusivo do que no descritivo, num jogo de equivalências intuitivas, por
se tornar o poeta uma soma das contingências em que se misturam o tempo, a
terra e as gentes.
Leio o poema que
inicia Fábula civil.
CLARO
Pelas tardes de fogo homens
pedras movem com capacetes
de sombra mergulhados
em ruas de verão e sal.
Nada me diz que as coisas
se passam como me dizem
além
da parede de vidro que nos
divide
aquém
das algemas de sono que nos
unem.
Sou como posso fiel
a meu projeto mesmo
que de pronto não o achem
meus olhos – anônimos
minhas mãos – rachadas
meus lábios – rebeldes
nos espaços burocráticos
nas relações de amizade
nos desertos duros da fome.
Liberdade é meu ser
e tempo. É o meu nome.
Razão – o meu sobrenome.
(1975)
(1975)
O terceiro livro, A
caligrafia do soluço e poesia anterior, só aparecerá quase 20 anos depois, em
1996, sem perder de vista a memória de tempos sombrios e as experiências
amargas, mas com a inclusão de poemas publicados anteriormente que lhe
conferiam uma atmosfera de animação e esperança.
Mares anoitecidos, meu
quarto livro de versos, cuja publicação em 2000 integrou a série de iniciativas
editoriais voltadas para os 500 anos do Descobrimento, reúne poemas de
conotação dramática e histórica, centrados no princípio de inspiração clássica
de que há mais poesia na história dos vencidos, isto é, na tessitura de um
malogro, do que nas alegrias e fosforescências dos vencedores. Então, preferi
ver o episódio que marcou dramaticamente a história da Bahia, nos anos 1624 e
1625, mais pelos olhos dos derrotados e expulsos holandeses que dos vitoriosos
portugueses, situação que, a meu ver, na época, não apresentava diferença,
desde que os portugueses, antes, tinham sido também invasores da chamada Terra
Brazilis.
Leio um poema de Mares
Anoitecidos.
ROCHEDOS
Meu coração agora te
pertence
lua que vaga sobre esses
rochedos,
eles mesmos reflexos de
longínquos
muros, agora esfinges a
espreitar
distâncias, a arrimar
arquitetura
nostálgica de cercos, a
exumar
brasão latino ou artifício
mouro.
Meu coração agora vos
pertence,
graves rochedos, arsenal de
fúrias,
que são artes do tempo,
vosso algoz:
em quieta hora da tarde ou
noite morna,
decreto imemorial que a
espuma lavra,
a ruína e morte, e a
solidão, alude
o som da água que ruge a
vossos pés.
(2000)
(2000)
Em 2001, publiquei uma
antologia intitulada Galope amarelo e novos poemas, para em 2011 dar a
público Poesia Reunida e Inéditos, em volume de quase 400 páginas, a que
se seguiu o de Sonetos elementais – Uma antologia, em 2012, e, por fim,
agora, Estuário dos dias e outros poemas.
Creio que devo referir-me um
pouco a esses meus exercícios de magia verbal. Sempre escrevi poesia, além das
cogitações que me são próprias, à luz de grandiosos exemplos, na presunção de
que, manejando com palavras, o poeta não pode dispensar o som e o ritmo, que
lhes são próprios; e por isso ainda vejo como não superada a recomendação de
Ezra Pound de que o poeta, além da obrigação de ir direto ao objeto cogitado,
deve inundar seu enunciado de palavras carregadas de significado, eliminando
todo e qualquer elemento supérfluo, sem descuidar-se da cadência musical. Isto
é, para mim, a ressonância de advertência contida em verso famoso do francês
Verlaine, - “de la musique avant toute chose” (“a música antes de tudo”).
Dentro dessa moldura, ouso defender que a elocução em poesia é basicamente
rítmica, com uma inclinação para o musical, no encadeamento e na entonação das
palavras.
Em relação a meu último
livro, Estuário dos dias e outros poemas, constituído em grande parte
de poemas lavrados em versos decassílabos, gostaria de transcrever palavras da
apresentação, que lhe fiz, em muito justificadoras de meu processo criativo,
que consiste em escrever versos sempre levando em conta o som e o ritmo das
palavras.
“Embora possa a muitos
parecer uma excentricidade ou, talvez, uma nostalgia de abominado rastro
parnasiano-simbolista, considero-o uma espécie de tributo à forma, pois
alimento intimamente a convicção de que, originário da Itália, foi o verso
decassílabo que civilizou a poesia, não apenas a portuguesa ou a hispânica, mas
ocidental. Dentro do universo lusófono, este verso possui extraordinária
longevidade, desde o momento em que Sá de Miranda, numa época de sagas
cavalheirescas, voltando de uma temporada na Itália (1521-1526), introduziu a
forma do soneto em Portugal e trouxe o decassílabo como seu leal escudeiro.”
A esse respeito, subscrevo o
que diz o excelente jornalista e ensaísta João Carlos Teixeira Gomes, meu
companheiro de geração e confrade na Academia de Letras de Bahia, por sinal,
também poeta e exemplar sonetista, que classifica, em recente livro, este
consagrado verso como “um operador poético poderoso”, pelo tanto que possui de
“harmonioso e melódico”. E assim o justifica: “No restrito espaço das dez
sílabas, o decassílabo se expande na direção de um universo de modulações
rítmicas e melódicas que parecem infindáveis”.
No encerramento desta minha
fala, quero ler um poema ainda inédito, que, no fundo, é o modo com que procuro
me redimir de, tendo escrito poemas de fundo memorialístico em homenagem a
Uruçuca e a Itabuna, jamais ter escrito um que reverenciasse a cidade de
Ilhéus, onde vivi e tive momentos de alegria e felicidade juvenil. Pode parecer
um chiste, mas o fato é que, lendo eu um poema de Ruy Espinheira Filho,
deparei-me com uma estrofe em que ele invocava a sua memória juvenil,
lamentando nunca ter ido à praia, nem tampouco visto o mar. Tão íntima
confissão me tocou e, então, escrevi um poema celebrando o momento em que
Ilhéus me proporcionou ver pela primeira vez o mar, aos 12 anos de idade.
Ei-lo, construído em sétimas
e versos de sete sílabas.
A DESCOBERTA DO MAR
Não,
não íamos à praia.
(...)
Pois é, também não víamos o mar
E as lagoas não compensavam.
(Ruy Espinheira Filho)
Eu também não via o mar.
Via o ribeirão e o brejo.
Vi depois um manso rio,
Onde aprendi a nadar.
Sonhava noites a fio.
No fundo havia o desejo
De sair e ver o mar.
Foi graças ao trem-de-ferro,
Que um dia parou na praça,
Com intenção de me lançar
Por um caminho sem erro,
E me levou para o mar.
Até me dava de graça
O contrário de um desterro.
Falam mais alto o meu sonho
E toda a minha alegria,
Com gosto de navegar.
Levei um susto medonho,
Tamanho mesmo do mar;
Com cores de epifania,
Era maior que o meu sonho.
Meu pai levou-me a um bar,
Que não comporta miçanga
(Ardente
nome: Vesúvio!),
Um éden diante do mar.
Corre pelo ar um eflúvio,
Traço um sorvete de manga,
Satisfaz-me o bom-mirar.
Vastidão de azul e verde,
A se perder no horizonte,
No rastro de branca espuma!
Quanta alegria em se ver
De longe o quanto se esfuma,
Qual doce correr de fonte!
Na vida quanto se perde...
Um dia
escrevi louronda,
Palavra de amor concreto,
Em folha depois sumida,
Na esteira de doida onda.
Uma lição para a vida:
Hoje sei em que dialeto
Um dia
escrevi louronda.
Água, terra, fogo e ar,
Trouxe ao menino a ciência,
E muito mais. Quando busco
Uma rima para mar,
Seja aurora ou lusco-fusco,
Cá me diz a experiência:
Não há melhor do que bar.
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