Angústia e Medo de Anne Frank
Cyro de Mattos
Um dos livros que mais me causou profunda tristeza foi O diário de Anne Frank. Antes de ler esse livro,
já sabia que a jovem Anne, seus pais, a irmã e os outros quatro clandestinos
que viviam no Anexo do escritório iriam ser descobertos a qualquer dia e seriam
enviados pelos alemães para o campo de concentração. Como não queria que isso
acontecesse, era impotente para impedi-lo, a tristeza foi se alojando dentro de
mim na medida em que ia lendo os relatos e conhecendo o círculo negro que se
fechava em torno de oito criaturas vivendo como ratos. O que o poeta Cassiano
Ricardo disse certa vez, a mais difícil prova é a da
inocência, deixava de ser metáfora dolorosa para ser verdade cruel
diante de meus olhos, vinda da leitura que eu fazia de O diário de Anne Frank.
A destruição da inocência mostrava-se diante de mim com a força de
relatos que descreviam atrocidades e horrores cometidos contra os judeus. A
pungente narrativa da jovem Anne Frank conta isso no período compreendido entre
12 de junho de 1942 a 1* de agosto de 1944 quando viveu escondida no Anexo do
sótão do escritório de Otto Frank, durante a Segunda Guerra Mundial. Aflições
de uma menina que se faz mulher, a revelação do amor em seu primeiro despertar,
pequenas alegrias de um espírito jovem que sonha em ser jornalista e escritora,
para que não se tornasse uma pessoa comum, mas útil mesmo depois de morta, tudo
isso na adversidade aterradora dos momentos revela uma alma ingênua, que
cresceu e amadureceu durante o sofrimento.
Filha de um banqueiro e de uma dona de casa, aos quatro anos de idade
Anne foi obrigada a sair da Alemanha com a família, pouco depois da chegada de
Adolfo Hitler ao poder. Com a perseguição aos judeus deflagrada também na
Holanda, Otto Frank, a senhora Frank, a adolescente Anne Frank e a irmã Margot
unem-se ao senhor van Daar, senhora Daar, o filho Peter e o cidadão Dussel e
decidem se esconderem dos invasores alemães.
Anne Frank chamou seu diário Querida Kitty, durante o período de
angústia e medo, alimentação com legumes podres e mau cheiro de objetos no
Anexo. O diário foi para sua alma angustiada o único instrumento que encontrou
para liberar os pensamentos e sentimentos. Ela passou a registrar com realismo
do que vivia a tensão e as transformações dos confinados, constantemente se
chocando uns com os outros. A atmosfera desesperadora, a conversa em sussurros,
os momentos em que nem podiam se mexer, a fome terrível, os juízos vindos da
crença em Deus, a distração que consistia em ouvir rádio com as notícias da
guerra e a leitura de alguns livros, muitos dias de silêncio entram no conteúdo
do diário numa época em que os ideais são estilhaçados e ressoam como caos, sofrimento
e morte. E essa era a época em que a humanidade vivia no século que celebrava
os tempos modernos, marcados pela chegada da aviação, cinema e psicanálise.
Pessoas pobres e desamparadas eram retiradas de suas casas. Mulheres
chegavam das compras e descobriam que as casas foram lacradas e as famílias
desapareceram. Crianças voltavam das escolas e não encontravam mais os pais.
Milhares de judeus sob o ritmo implacável de um programa com incrível
capacidade de persistência eram eliminados pelos alemães. Selecionavam homens,
mulheres e crianças. Separavam os pais dos filhos, as mulheres dos maridos. Não
poupavam os velhos e os doentes. Formava-se o grupo dos condenados à morte, o
dos trabalhadores forçados, ao mesmo tempo em que todos eram despojados de sua
identidade cultural, a qual era substituída pelo número de série tatuado no
pulso. Tinham as cabeças raspadas.
A talentosa escritora adolescente indaga a certa altura de seu diário
que sentido tem a guerra. Por que as pessoas não podem viver juntas em paz? Por
que toda aquela destruição? Como gado doente e sujo, que vai para o matadouro,
criaturas indefesas apertadas nos vagões. Uma nação moderna, com a sua cultura
requintada, que dera ao mundo homens como Bach, Mozart, Beethoven, Haendel,
Goethe, Hesse, Thomas Mann, Rilke, Kant, Hegel, agora bloqueava um povo,
recuando-o para os subterrâneos mais indignos.
Frágil e indefesa, tanto quanto milhares, Anne Frank morreu de tifo, no
campo de concentração Bergen-Belsen, aos 15 anos de idade. Sua vida contradizia
uma condenação sem sentido no diário que deixou como um memorial precioso para
a humanidade. Destacam-se nesse livro sentimentos e pensamentos
inquestionáveis, como o de que sem liberdade o ser humano não respira, caminha
numa viagem dolorosa por um buraco negro feito de irracionalidades.
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