Conto
de Cyro de Mattos
Queria
acompanhar um enterro e ver pela primeira vez como
era que enterravam o defunto no cemitério. O
enterro às vezes passava pela rua do comércio. As pessoas
cabisbaixas atrás seguiam o caixão com o defunto, que
era levado pelos homens mais jovens. Quando cansavam, revezavam-se.
Outros homens seguravam agora nas alças do caixão, e o cortejo
prosseguia em silêncio na rua de chão batido. Contornava a rua do
comércio, rumo ao cemitério.
Gente
parava nos passeios, tirava o chapéu em sinal de respeito ao
morto, curiosos apareciam na porta das lojas. Ficavam
olhando o enterro passar com as pessoas
tristes. Algumas levavam flores nos braços, os parentes e amigos do
morto. Quando era enterro de criança, meninos e meninas acompanhavam
o cortejo à frente do caixão, vestidos como anjo num
camisolão de cetim branco, uma coroa de flores na cabeça.
Tinham asas feitas com penas de galinha, presas às costas. Levavam
flores alvas e cantavam canto de igreja com os pequenos corações
contritos.
A
primeira vez que vi um enterro de criança
soube então que menino como eu também morria. Ia para o
céu, claro, o padre dizia isso na missa, que Jesus gostava muito das
crianças porque eram puras, não tinham os pecados de gente
grande.
Mas
o que era a morte, comecei a indagar lá em casa. A mãe
falou que era uma mulher feia, mas quem acreditava em Jesus e seguia
os preceitos que o filho de Deus ensinava não devia temê-la. Quando
ela chegava para carregar uma pessoa para o além, que é
o outro mundo, quem foi bom aqui nesta terra, não cometeu
pecado pesado, vai ter o seu anjo de guarda para levar
a alma para morar na casa de Nosso Senhor. Quem foi mau,
cometeu os piores pecados, como matar o semelhante, a
morte leva a alma dele para o fogo do inferno. Quem foi
ora bom, ora mau, vai ser levado para o purgatório, uma
espécie de lugar onde a alma fica sofrendo pelos pecados menos
pesados que cometeu até se purificar e alcançar o perdão
de Deus.
Tudo
isso que a mãe explicava sobre a morte podia ter sua verdade e até
me convencia em parte sobre o que essa
mulher feia gostava de fazer a cada pessoa que
levava para outras terras. Só não gostava quando perguntava se
um menino depois de morto podia voltar de novo para
brincar com os amigos aqui na terra, e a mãe revelava que
nunca ninguém soube que isso já havia acontecido um dia.
- Então
a morte que vá comer bosta de galinha! – dizia eu,
fazendo com que minha mãe desse uma boa risada.
Quando
perguntava ao pai o que era a morte, ele prontamente dizia que com
ele a bicha imunda não viesse se fazer de prosa. A taca de couro
grosso estava ali mesmo guardada no baú para dar umas boas tacadas
na indesejada, se ela algum dia entendesse de querer lhe
fazer uma visita.
Sorria
agora eu, satisfeito com a coragem que o pai demonstrava
para fazer correr a morte, se ousasse aparecer lá em casa.
Ia receber na mesma hora uma boa surra aplicada nas
costelas dela com a taca de couro grosso.
Naquele
dia resolvi acompanhar o enterro que passava pela rua do comércio
com poucas pessoas. No início acompanhei de longe, precavendo-me
para que algum amigo de meus pais não me visse e fosse contar
depois o que eles certamente não aprovariam.
Ficariam zangados e me colocariam de castigo. Proibido de brincar com
os amigos por vários dias.
Quando
da ladeira em que o enterro subia vagaroso se avistou o muro do
cemitério, aproximei-me por trás das pessoas que participavam
daquele cortejo calado, com seus ares tristes. Pouco depois, entrava
com o enterro no cemitério, que eu via pela
primeira vez e que me deu com seus ares sombrios um frio
na barriga, como nunca tinha sentido. Tímido passei os olhos
pelas galerias com muitas gavetas tapadas com
tijolos, pintadas de cal. O nome do falecido inscrito em cada gaveta.
Observei capelas com retrato dos falecidos lá dentro, escultura de
homens importantes em cima dos mausoléus de mármore. Lá
embaixo, a terra cheia de cruzes indicava covas
rasas, provavelmente ali os pobres eram enterrados. Foi
para lá que o enterro se dirigiu.
A
cova já estava cavada num buraco para receber o caixão com o
morto. Antes de descerem o caixão, a mulher de cabelos brancos,
num vestido pobre, pediu que tirassem a tampa. Queria ver o marido
pela última vez. Ela passou a mão no rosto do morto, que
estava preto feito carvão, os olhos fechados. A mulher
começou a chorar alto. Esperei que descessem devagar o
caixão no buraco, estava amarrado com cordas grossas pelas alças..O
coveiro jogou depois pás de terra, que aos poucos foi enchendo o
buraco. A mulher continuava a chorar alto. Comecei também a chorar
e, antes que ouvissem meu choro, fui saindo dali nervoso, tropeçando
nos passos.
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