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segunda-feira, 11 de março de 2013

A Cara da Morte


       Conto de Cyro de Mattos 
                  


Queria acompanhar um enterro e ver  pela primeira vez  como era que enterravam o   defunto no cemitérioO enterro às vezes passava pela rua do comércio. As pessoas cabisbaixas atrás  seguiam o caixão com o defunto, que era levado pelos homens mais jovens. Quando cansavam,  revezavam-se. Outros homens seguravam agora nas alças do caixão, e o cortejo prosseguia em silêncio na rua de chão batido. Contornava a rua do comércio, rumo ao cemitério.
 Gente parava nos passeios, tirava o chapéu em sinal de respeito ao morto,  curiosos apareciam na porta das lojas. Ficavam olhando o enterro passar  com as  pessoas tristes. Algumas levavam flores nos braços, os parentes e amigos do morto. Quando era enterro de criança, meninos e meninas acompanhavam o cortejo à frente do caixão,  vestidos como  anjo  num camisolão de cetim branco,  uma coroa de flores na cabeça. Tinham asas feitas com penas de galinha, presas às costas. Levavam flores alvas e cantavam canto de igreja com os pequenos corações contritos.
 A primeira  vez que vi um enterro de  criança soube então  que menino como eu também morria. Ia para o céu, claro, o padre dizia isso na missa, que Jesus gostava muito das crianças porque eram puras, não tinham os pecados de gente grande. 
Mas o que era a morte, comecei a indagar lá em casa. A mãe falou que era uma mulher feia, mas quem acreditava em Jesus e seguia os preceitos que o filho de Deus ensinava não devia temê-la. Quando ela chegava para carregar uma pessoa  para o além, que é o outro mundo, quem  foi bom aqui nesta terra, não cometeu pecado pesado, vai  ter o seu anjo de guarda para levar a  alma para morar na casa de Nosso Senhor. Quem foi mau, cometeu os piores pecados, como matar o semelhante,  a morte leva a alma dele  para o fogo do inferno. Quem foi ora bom, ora mau, vai ser levado  para o purgatório, uma espécie de lugar onde a alma fica sofrendo pelos pecados menos pesados que cometeu  até se purificar e alcançar o perdão de Deus.
Tudo isso que a mãe explicava sobre a morte podia ter sua verdade e até me  convencia em parte  sobre o que essa mulher  feia  gostava de fazer a cada pessoa que levava para outras terras. Só não gostava quando  perguntava  se um menino  depois de morto podia voltar de novo para brincar com os amigos aqui na terra, e a mãe revelava   que nunca ninguém soube que isso já havia acontecido um dia.
-  Então a morte que vá  comer bosta de galinha! – dizia eu, fazendo com que minha mãe desse uma boa risada.
Quando perguntava ao pai o que era a morte, ele prontamente dizia que com ele a bicha imunda não viesse se fazer de prosa. A taca de couro grosso estava ali mesmo guardada no baú para dar umas boas tacadas na indesejada, se ela  algum dia entendesse de querer lhe fazer uma visita.
Sorria agora eu, satisfeito com a coragem  que o pai demonstrava para fazer correr a morte, se ousasse aparecer lá em casa. Ia receber na mesma hora uma boa surra aplicada nas costelas dela com a taca de couro grosso.
Naquele dia resolvi acompanhar o enterro que passava pela rua do comércio com poucas pessoas. No início acompanhei de longe, precavendo-me para que algum amigo de meus pais não me visse e fosse  contar depois  o que eles certamente não  aprovariam. Ficariam zangados e me colocariam de castigo. Proibido de brincar com os amigos por vários  dias.
Quando da ladeira em que o enterro subia vagaroso se avistou o muro do cemitério, aproximei-me por trás das pessoas que participavam daquele cortejo calado, com seus ares tristes. Pouco depois, entrava com  o enterro  no cemitério, que eu via pela primeira vez e que  me deu com seus ares sombrios um frio na barriga, como nunca tinha sentido. Tímido passei os olhos pelas galerias com muitas gavetas  tapadas com tijolos, pintadas de cal. O nome do falecido inscrito em cada gaveta. Observei capelas com retrato dos falecidos lá dentro, escultura de homens  importantes em cima dos mausoléus de mármore. Lá embaixo, a terra cheia de cruzes  indicava  covas rasas, provavelmente ali  os pobres eram enterrados. Foi para lá que o enterro se dirigiu.
A cova já estava cavada num buraco para receber o caixão com o morto. Antes de descerem o caixão, a mulher de cabelos brancos, num vestido pobre, pediu que tirassem a tampa. Queria ver o marido pela última vez. Ela  passou a mão no rosto do morto, que estava preto feito  carvão, os olhos fechados. A mulher começou a chorar alto. Esperei que  descessem devagar o caixão no buraco, estava amarrado com cordas grossas pelas alças..O coveiro jogou depois pás de terra, que aos poucos foi enchendo o buraco. A mulher continuava a chorar alto. Comecei também a chorar e, antes que ouvissem meu choro, fui saindo dali nervoso, tropeçando nos passos.  



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