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quinta-feira, 7 de março de 2013

O Visionário José Saramago


              Cyro de Mattos


A obra de arte literária responde a vários tipos de mimese na transposição da realidade. Reflete a realidade como é no realismo,  melhor do que é no idealismo (romantismo) e no grotesco pior do que é. De uns tempos para cá esses três níveis de mimese  passou a coexistir a um só tempo na obra de ficção, fazendo com que  a crítica moderna não mais aceitasse o esquema de classificação metodológica dos gêneros literários. No circuito pendular da arte literária apareceram novas técnicas para expressar o mundo de dentro e de fora transitando no século XX. Outras vozes e anseios ousaram inventar caminhos para libertar a obra literária da estrutura tradicional.

Aldo Huxley contraponteou o tempo lógico fragmentando os episódios da narrativa tradicional para dar vivacidade à trama. Proust apegou-se à memória psicológica para reconstruir o tempo perdido fazendo com que perdurasse através de momentos escoados numa só época. William Faulkner incorporou elementos de ordem múltipla na onisciência narrativa e conseguiu  aprofundar-se no complexo universo do herói  movido por paixões,  impulsos e terrores, que  levam o personagem para a derrocada dos sentidos sob o domínio do trágico. Usou para isso dois planos temporais, do passado e  presente, que se cruzam nos momentos decisivos da ação. James  Joyce empregou  quatrocentas  mil palavras para narrar um único dia, um único cenário e uma única  viagem do homem moderno, no período compreendido entre a manhã  e a meia-noite. Realizou a proeza com tamanha soberba técnica que se elevou ao plano de  ser o  inventor que mais transgrediu na forma para corresponder aos novos anseios dos tempos modernos. Empregou os  monólogos interiores ininterruptos e fluxos da consciência na escrita arrojada que leva para frente  essa noção moderna de mitologia.

           João Guimarães Rosa inventou um novo discurso  que subverte a sintaxe tradicional e reveste a linguagem com o canto e a plumagem das palavras. Inventou uma saga falsa, resultante do prodígio imaginativo e a linguagem encantada, a qual  foi recriada com palavras aladas. O tempo cronológico da narrativa linear assim foi  abolido. As categorias psicológicas e alusivas da poesia nas zonas ilógicas da ilusão tomam o lugar da linguagem realista para transmitir o rural com uma pulsação diferente.  A prosa escorrida no fluxo ininterrupto  do inconsciente, monólogos  vazados de interioridades, neologismos da linguagem com seus potenciais semânticos e poéticos, as percepções sábias dos personagens ritmadas em observações penetrantes e lúcidas acerca de um sertão mítico,  tudo isso faz de João Guimarães Rosa um dos grandes inventores da prosa moderna de ficção, colocando-o na  companhia dos maiores transgressores da novelística  mundial de todos os tempos.  

            É fato apontado pela crítica o ritmo de modernidade que escritores como José Saramago e Joaquim Cardoso Pires impuseram à literatura produzida por Portugal  na segunda metade do século XX. Uma nova concepção de arte literária  refaz outras dimensões nas relações entre o homem  e o universo com o objetivo, segundo  E. M. Forster, ao comentar a fantasia criada por Joyce em Ulisses, “de degradar todas as coisas e, mais particularmente, a civilização e a arte, virando-as de dentro para fora e  de cima para baixo”. (Aspectos do romance, página 96, Editora Globo). 

         A concepção e execução em níveis de vanguarda estão visíveis na prosa de ficção de José Saramago e alcançam na escrita um plano de organização perfeito. Ele manipula uma técnica narrativa com poucos parágrafos, usa os diálogos embutidos no discurso, entre as vírgulas, remetendo-nos dessa maneira a William Faulkner, romancista que colocou no texto verbal da narrativa a fala dos personagens fora do modo tradicional. O romancista português também faz uso das interioridades do personagem que se manifestam na consciência para expor nossa condição diante do mundo. É a própria consciência do personagem que revela seus tormentos  no discurso que, embora simbólico, torna-se, como em Faulkner, intensamente aflitivo quando expõe os níveis psicológicos e sociais de suas duras realidades.    

        Em Ensaio sobre a Cegueira, que pode ser visto como romance metáfora dos  sombrios tempos atuais, José Saramago é um  visionário pujante e denso, articulando  o discurso simbólico representado por um bando de cegos, que se move sem controle pela  cidade.  Sua fantasia cheia de solidões e terrores nos faz pensar em tempos sombrios para a humanidade quando ela  perde um dos sentidos vitais, a visão, e se comporta com gestos primitivos.

Percebe-se que José Saramago em Ensaio sobre a cegueira  não é apenas um eficiente assimilador dos elementos de vanguarda a serviço da escrita no romance moderno. Sabe ordená-los com habilidade no discurso construído com imaginação fecunda e convincente. E assim invade a ficção atual com a força de um fenômeno porque sabe inventar humanidades, projetar verdades que crescem nos conflitos da problemática interior do indivíduo e na crítica aos valores da sociedade. Expõe com grandeza criativa essas verdades que correspondem à nossa condição pelos  desvãos do mundo.

           O ensaísta na pele do ficcionista sabe tanto quanto qualquer um que a cegueira  é uma questão privada entre a pessoa  e os olhos com que veio ao mundo.  Nesse romance onde se cruzam literatura e sabedoria presencia-se  com José Saramago que a cegueira pode ter  outra perspectiva. E tudo começa  com um motorista, parado no sinal, que de repente percebe que está cego. E  é assim,  com as pessoas que chegam apressadas para socorrè-lo, que uma cadeia ininterrupta de cegueira se forma. Uma cegueira branca como um mar de leite, sem que jamais tivesse sido conhecida, alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O governo decide intervir,  determinando que as  pessoas infectadas sejam colocadas no manicômio em quarentena. E aos poucos as características primitivas do ser humano começam a aparecer em cada cego.  A força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo. Depressa o mundo torna-se dominado pela cegueira e nele apenas uma mulher, não se sabe como  e em segredo, irá manter a sua visão. Enfrentará todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam a cada dia, como   desejo, ordem, carinho, humilhação, vergonha, do lado dos dominados; poder, ambição, violência, do lado dos subjugadores.

        Nesta quarentena com poucos recursos para que a vida tenha um mínimo de dignidade, esses sentimentos se irão desenvolver sob  lutas entre grupos pela pouca comida fornecida pelos guardas do governo,  na compaixão pelos doentes e os mais carentes, nos impotentes diante de cenas que antes nunca seriam cometidas, com atos de violência,  abuso sexual e  mortes.

Vamos aprender, nesse romance que nos tortura em cada lance descrito,  como dolorosamente  regredimos na escala biológica quando perdemos a visão. Mostramos  que somos feito dessa massa, a ruindade e a indiferença. Quando privada de uma de suas funções vitais, o olhar, a humanidade  reduz-se às circunstâncias absurdas de que viver não tem sentido, “pois a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. (pág. 204). Não se deve esquecer que Ensaio sobre a cegueira  é também um romance  sobre o amor, o afeto e a solidariedade.

A imagem aterradora da vida que José Saramago passa neste romance  é de que os que enxergam têm o compromisso imenso de olhar os seres e as coisas sob a ética das virtudes,  já que os outros enxergam a existência apenas  pela superfície.  No início  eram três dúzias de cegos no manicômio, depois com a chegada de outros o número passou a ser  duzentos e quarenta.  Teriam que ali permanecer como o cão que não conhece outro cão pelo nome posto pelo dono. É pelo cheiro que um cego  identifica  o outro. Como outra  raça de cães é como os cegos apresentam-se em lances aterradores, cenas absurdas  nas quais o ladrar é o falar, o resto não conta, como feições, cor dos olhos, da  pele, cabelo, tamanho, idade, Lidas as idéias pelo romancista na mente dos personagens revela-se ali o mundo como se não existisse na zona do racional, fosse o inferno inundado de  porcarias e comportamento animal.  

Quando o grupo de cegos,  que fora instalado pelo governo em uma quarentena, consegue sair finalmente do manicômio,  em razão de  um fogo posto na camarata ocupada por um grupo de cegos dominante, a mulher do médico, que vê,  depara-se com a ausência de guardas na cidade  toda infectada com a putrefação de cadáveres, lixo acumulado, detritos espalhados por todos os cantos. Todo o tipo de imundice havia se instalado pela cidade. Os cegos passam a se movimentar com  os seus instintos animais,  sobrevivendo  como nômades, instalando-se em lojas ou casas desconhecidas.

Nessa verdadeira viagem às trevas, narrada por José Saramago no romance Ensaio sobre a cegueira, personagens como o primeiro cego,  a mulher do primeiro cego, o médico, a mulher do médico, a única que vê,  o velho com a venda preta, a rapariga de óculos escuros, o rapazinho estrábico, o ladrão do carro,  o cão de lágrimas  e outros coadjuvantes não possuem  nomes. Com suas particularidades movem-se nas cenas agarrados ao medo. Tateiam prisioneiros de sua culpa, rastejam com sua inocência, murmuram tristes entre  as sombras de seu destino. 

       Com técnica avançada, contexto filosófico, uma imagem desesperadora de  tempos absurdos projeta-se em Ensaio sobre a cegueira. Nela se arrastam seres humanos destituídos dos valores éticos, massificados, distantes das relações afetivas. Não se trata de romance de fácil apreensão. Saramago tirou do Livro dos Conselhos a epígrafe da obra, Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara, forçando-nos a refletir que aquele que melhor vê é quem observa, separa, seleciona, com lucidez julga, sereno ao outro abraça.  

       Mostra as reações do ser humano diante das  necessidades, sua incapacidade,  impotência,  desprezo e abandono. Leva-nos também a analisar sobre  costumes, regras morais, preconceitos,  através dos olhos da personagem principal, a mulher do médico, que se vê  ao longo da narrativa diante de situações inconcebíveis. Ela mata para sobreviver e preservar os demais, encontra-se com a morte de maneira inusitada. Caminha entre cadáveres espalhados pelas ruas, alguns sendo comidos pelos cães.  Permance olhando incêndios sem poder fazer nada. Após a saída do manicomio, entrando  numa igreja, vê um ambiente deserto batido pela solidão em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não vêem, que ninguém veja...” A narrativa termina quando, exatamente em função de contágio, de repente o mundo cego cede  lugar ao mundo imundo e desalmado. As lembranças  e passos  de outro mundo não desaparecem, permanecem na duração psicológica de suas aflições terríveis.

          José saramago declarou que Ensaio sobre a cegueira era  um livro intencionalmente  terrível com o qual queria que o leitor sofresse  tanto como ele  ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. Éra um livro brutal e violento,   simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da sua vida. São trezentas  páginas de constante aflição. Através da escrita impressa com as tintas do sofrimento,  tentou  dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso. 
         Obra que transmite enorme sofrimento ao passar uma imagem dolorosa do que podemos ser em circunstâncias adversas, de sua percepção do mundo  transbordam sentimentos perversos, baixas gradações de nossa condição em cada cena  violenta dos que perderam os rumos da vida.  A escrita de José Saramago  intensamente dolorida  nessa obra eleva-o à dimensão dos maiores romancistas visionários da literatura ocidental, como Kafka e o brasileiro José J. Veiga.

         Esses narradores cheios de símbolos, cronistas do absurdo dos quais  promana  um tempo histórico e uma visão  universal inadmissível da existência. Configura-se neles um  espaço habitado pelo ser humano com  seu pesadelo angustiante,  opressivo e sufocante.   



  
                                 Referências Bibiliográficas
  
Forster. E. M. Aspectos do romance, Editora Globo, Porto Alegre, 1969.
Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira, Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

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