Cyro de Mattos
A obra de arte
literária responde a vários tipos de mimese na transposição da realidade.
Reflete a realidade como é no realismo,
melhor do que é no idealismo (romantismo) e no grotesco pior do que é.
De uns tempos para cá esses três níveis de mimese passou a coexistir a um só tempo na obra de
ficção, fazendo com que a crítica
moderna não mais aceitasse o esquema de classificação metodológica dos gêneros
literários. No circuito pendular da arte literária apareceram novas técnicas
para expressar o mundo de dentro e de fora transitando no século XX. Outras
vozes e anseios ousaram inventar caminhos para libertar a obra literária da
estrutura tradicional.
Aldo Huxley
contraponteou o tempo lógico fragmentando os episódios da narrativa tradicional
para dar vivacidade à trama. Proust apegou-se à memória psicológica para
reconstruir o tempo perdido fazendo com que perdurasse através de momentos
escoados numa só época. William Faulkner incorporou elementos de ordem múltipla
na onisciência narrativa e conseguiu
aprofundar-se no complexo universo do herói movido por paixões, impulsos e terrores, que levam o personagem para a derrocada dos
sentidos sob o domínio do trágico. Usou para isso dois planos temporais, do
passado e presente, que se cruzam nos
momentos decisivos da ação. James Joyce
empregou quatrocentas mil palavras para narrar um único dia, um
único cenário e uma única viagem do
homem moderno, no período compreendido entre a manhã e a meia-noite. Realizou a proeza com tamanha
soberba técnica que se elevou ao plano de
ser o inventor que mais
transgrediu na forma para corresponder aos novos anseios dos tempos modernos.
Empregou os monólogos interiores
ininterruptos e fluxos da consciência na escrita arrojada que leva para
frente essa noção moderna de mitologia.
João Guimarães Rosa inventou um novo
discurso que subverte a sintaxe
tradicional e reveste a linguagem com o canto e a plumagem das palavras.
Inventou uma saga falsa, resultante do prodígio imaginativo e a linguagem
encantada, a qual foi recriada com
palavras aladas. O tempo cronológico da narrativa linear assim foi abolido. As categorias psicológicas e
alusivas da poesia nas zonas ilógicas da ilusão tomam o lugar da linguagem
realista para transmitir o rural com uma pulsação diferente. A prosa escorrida no fluxo ininterrupto do inconsciente, monólogos vazados de interioridades, neologismos da
linguagem com seus potenciais semânticos e poéticos, as percepções sábias dos
personagens ritmadas em observações penetrantes e lúcidas acerca de um sertão
mítico, tudo isso faz de João Guimarães
Rosa um dos grandes inventores da prosa moderna de ficção, colocando-o na companhia dos maiores transgressores da novelística mundial de todos os tempos.
É fato apontado pela crítica o
ritmo de modernidade que escritores como José Saramago e Joaquim Cardoso Pires
impuseram à literatura produzida por Portugal
na segunda metade do século XX. Uma nova concepção de arte
literária refaz outras dimensões nas
relações entre o homem e o universo com
o objetivo, segundo E. M. Forster, ao
comentar a fantasia criada por Joyce em Ulisses,
“de degradar todas as coisas e, mais particularmente, a civilização e a arte,
virando-as de dentro para fora e de cima
para baixo”. (Aspectos do romance, página 96, Editora Globo).
A concepção e execução em níveis de
vanguarda estão visíveis na prosa de ficção de José Saramago e alcançam na
escrita um plano de organização perfeito. Ele manipula uma técnica narrativa
com poucos parágrafos, usa os diálogos embutidos no discurso, entre as
vírgulas, remetendo-nos dessa maneira a William Faulkner, romancista que
colocou no texto verbal da narrativa a fala dos personagens fora do modo
tradicional. O romancista português também faz uso das interioridades do
personagem que se manifestam na consciência para expor nossa condição diante do
mundo. É a própria consciência do personagem que revela seus tormentos no discurso que, embora simbólico, torna-se,
como em Faulkner, intensamente aflitivo quando expõe os níveis psicológicos e
sociais de suas duras realidades.
Em Ensaio
sobre a Cegueira, que pode ser visto como romance metáfora dos sombrios tempos atuais, José Saramago é
um visionário pujante e denso,
articulando o discurso simbólico
representado por um bando de cegos, que se move sem controle pela cidade.
Sua fantasia cheia de solidões e terrores nos faz pensar em tempos
sombrios para a humanidade quando ela perde
um dos sentidos vitais, a visão, e se comporta com gestos primitivos.
Percebe-se que
José Saramago em Ensaio sobre a cegueira não é apenas um eficiente assimilador dos
elementos de vanguarda a serviço da escrita no romance moderno. Sabe ordená-los
com habilidade no discurso construído com imaginação fecunda e convincente. E
assim invade a ficção atual com a força de um fenômeno porque sabe inventar
humanidades, projetar verdades que crescem nos conflitos da problemática
interior do indivíduo e na crítica aos valores da sociedade. Expõe com grandeza
criativa essas verdades que correspondem à nossa condição pelos desvãos do mundo.
O ensaísta na pele do ficcionista
sabe tanto quanto qualquer um que a cegueira
é uma questão privada entre a pessoa
e os olhos com que veio ao mundo.
Nesse romance onde se cruzam literatura e sabedoria presencia-se com José Saramago que a cegueira pode
ter outra perspectiva. E tudo
começa com um motorista, parado no
sinal, que de repente percebe que está cego. E
é assim, com as pessoas que chegam apressadas para
socorrè-lo, que uma cadeia ininterrupta de cegueira se forma. Uma cegueira
branca como um mar de leite, sem que jamais tivesse sido conhecida, alastra-se
rapidamente em forma de epidemia. O governo decide intervir, determinando que as pessoas infectadas sejam colocadas no
manicômio em quarentena. E aos poucos as características primitivas do ser
humano começam a aparecer em cada cego. A força da epidemia não diminui com as
atitudes tomadas pelo governo. Depressa o mundo torna-se dominado pela cegueira
e nele apenas uma mulher, não se sabe como e em segredo, irá manter a sua visão.
Enfrentará todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos
os sentimentos que se desenrolam a cada dia, como desejo, ordem, carinho, humilhação, vergonha,
do lado dos dominados; poder, ambição, violência, do lado dos subjugadores.
Nesta quarentena com poucos recursos para que
a vida tenha um mínimo de dignidade, esses sentimentos se irão desenvolver
sob lutas entre grupos pela pouca comida
fornecida pelos guardas do governo, na
compaixão pelos doentes e os mais carentes, nos impotentes diante de cenas que
antes nunca seriam cometidas, com atos de violência, abuso sexual e mortes.
Vamos
aprender, nesse romance que nos tortura em cada lance descrito, como dolorosamente regredimos na escala biológica quando
perdemos a visão. Mostramos que somos
feito dessa massa, a ruindade e a indiferença. Quando privada de uma de suas
funções vitais, o olhar, a humanidade
reduz-se às circunstâncias absurdas de que viver não tem sentido, “pois a
cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”.
(pág. 204). Não se deve esquecer que Ensaio
sobre a cegueira é também um
romance sobre o amor, o afeto e a
solidariedade.
A imagem
aterradora da vida que José Saramago passa neste romance é de que os que enxergam têm o compromisso
imenso de olhar os seres e as coisas sob a ética das virtudes, já que os outros enxergam a existência
apenas pela superfície. No início
eram três dúzias de cegos no manicômio, depois com a chegada de outros o
número passou a ser duzentos e
quarenta. Teriam que ali permanecer como
o cão que não conhece outro cão pelo nome posto pelo dono. É pelo cheiro que um
cego identifica o outro. Como outra raça de cães é como os cegos apresentam-se em
lances aterradores, cenas absurdas nas
quais o ladrar é o falar, o resto não conta, como feições, cor dos olhos,
da pele, cabelo, tamanho, idade, Lidas
as idéias pelo romancista na mente dos personagens revela-se ali o mundo como
se não existisse na zona do racional, fosse o inferno inundado de porcarias e comportamento animal.
Quando o grupo
de cegos, que fora instalado pelo
governo em uma quarentena, consegue sair finalmente do manicômio, em razão de um fogo posto na camarata ocupada
por um grupo de cegos dominante, a mulher do médico, que vê, depara-se com a ausência de guardas na
cidade toda infectada com a putrefação
de cadáveres, lixo acumulado, detritos espalhados por todos os cantos. Todo o
tipo de imundice havia se instalado pela cidade. Os cegos passam a se
movimentar com os seus instintos
animais, sobrevivendo como nômades, instalando-se em lojas ou casas
desconhecidas.
Nessa
verdadeira viagem às trevas, narrada por José Saramago no romance Ensaio sobre a cegueira, personagens
como o primeiro cego, a mulher do
primeiro cego, o médico, a mulher do médico, a única que vê, o velho com a venda preta, a rapariga de
óculos escuros, o rapazinho estrábico, o ladrão do carro, o cão de lágrimas e outros coadjuvantes não possuem nomes. Com suas particularidades movem-se nas
cenas agarrados ao medo. Tateiam prisioneiros de sua culpa, rastejam com sua
inocência, murmuram tristes entre as
sombras de seu destino.
Com técnica avançada, contexto
filosófico, uma imagem desesperadora de
tempos absurdos projeta-se em Ensaio
sobre a cegueira. Nela se arrastam seres humanos destituídos dos valores
éticos, massificados, distantes das relações afetivas. Não se trata de romance
de fácil apreensão. Saramago tirou do Livro dos Conselhos a epígrafe da obra, Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara,
forçando-nos a refletir que aquele que melhor vê é quem observa, separa,
seleciona, com lucidez julga, sereno ao outro abraça.
Mostra
as reações do ser humano diante das necessidades, sua incapacidade, impotência,
desprezo e abandono. Leva-nos também a analisar sobre costumes, regras morais, preconceitos, através dos olhos da personagem principal, a
mulher do médico, que se vê ao longo da
narrativa diante de situações inconcebíveis. Ela mata para sobreviver e
preservar os demais, encontra-se com a morte de maneira inusitada. Caminha
entre cadáveres espalhados pelas ruas, alguns sendo comidos pelos cães. Permance olhando incêndios sem poder fazer
nada. Após a saída do manicomio, entrando numa igreja, vê um ambiente deserto batido
pela solidão em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não
vêem, que ninguém veja...” A
narrativa termina quando, exatamente em função de contágio, de repente o mundo
cego cede lugar ao mundo imundo e desalmado.
As lembranças e passos de outro mundo não desaparecem, permanecem na
duração psicológica de suas aflições terríveis.
José
saramago declarou que Ensaio sobre a cegueira
era um livro intencionalmente terrível com o qual queria que o leitor sofresse
tanto como ele ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa
tortura. Éra um livro brutal e violento, simultaneamente uma das experiências mais
dolorosas da sua vida. São trezentas páginas de constante aflição. Através da
escrita impressa com as tintas do sofrimento,
tentou dizer que não somos bons e
que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.
Obra que transmite enorme sofrimento ao passar uma imagem dolorosa do
que podemos ser em circunstâncias adversas, de sua percepção do mundo transbordam sentimentos perversos, baixas
gradações de nossa condição em cada cena
violenta dos que perderam os rumos da vida. A escrita de José Saramago intensamente dolorida nessa obra eleva-o à dimensão dos maiores
romancistas visionários da literatura ocidental, como Kafka e o brasileiro José
J. Veiga.
Esses
narradores cheios de símbolos, cronistas do absurdo dos quais promana
um tempo histórico e uma visão
universal inadmissível da existência. Configura-se neles um espaço habitado pelo ser humano com seu pesadelo angustiante, opressivo e sufocante.
Referências Bibiliográficas
Forster. E. M. Aspectos do romance,
Editora Globo, Porto Alegre, 1969.
Saramago, José. Ensaio sobre a
cegueira, Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
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